Viagens

Santa Clara-a-Velha

O cinquentenário da inauguração da barragem de Santa Clara, no concelho de Odemira, Alentejo, foi comemorado no passado dia 10 de maio com atividades que vieram lembrar a sua importância, a aldeia que era antes e aquela em que se tornou depois. Esta data foi significativa para mim e tantos outros que viram erguer os enormes paredões e represas durante os dez anos que levou a construir. Como nos prendia a atenção toda a maquinaria e materiais necessários para erguer aquela grande obra!

Viajar até Santa Clara-a-Velha é regressar ao tempo de uma infância despreocupada, feliz e de muitas descobertas. Foi onde vivi, desde os cinco anos de idade até me mudar para Lisboa quando ingressei na universidade. O rio Mira, que passava pela aldeia com um caudal considerável até o prenderem na barragem, está indelevelmente ligado à minha aprendizagem de vida. 

Na margem direita, um paredão e muro baixo caiados de branco com barra azul, separam as casas do leito do rio, fazendo também vezes de miradouro. As minhas lembranças das estações do ano, em particular do verão e do inverno estão associadas ao rio. As do inverno, incluem as cheias que causavam grandes preocupações e prejuízos. As crianças eram constantemente avisadas para não se aproximarem da água. O caudal barrento arrastava laranjeiras, porcos, sacos de farinha e tantos outros haveres que os mais fortes e corajosos tentavam salvar junto da ponte, e restituir aos donos.

No verão, o rio atraía-nos até ao pego fundo junto das ruínas da ponte romana chamada de Dona Maria; era aí que nos refrescávamos dos grandes calores, mudando de roupa às escondidas, junto dos loendreiros cor de rosa. Nas águas meio paradas do rio, cresciam os nenúfares brancos e amarelos, ainda hoje as minhas flores favoritas, que pintores como Claude Monet souberam retratar de modo único.

O rio tinha utilidade para as nossas mães que aí lavavam a roupa e as tripas dos porcos, após a matança. A ajuda das crianças era bem-vinda, com um pauzinho que ajudava a virá-las. Nós mergulhávamos os pés nos dias de verão para brincar na água corrente.

Umas passadeiras, na parte mais estreita do rio, levavam ao poço coberto, aonde se ia buscar a água para casa nos cântaros de barro. Foi dessas passadeiras que, aos sete anos de idade caí, fui arrastada pela corrente numa manhã mas, graças a Deus, salva pela minha mãe.

Era ao redor do poço, na margem esquerda do rio que, durante o verão, se realizavam as duas feiras anuais. Vinham o circo, os carrocéis e as barraquinhas onde se vendia de tudo. Havia feira de gado, ciganas que liam a nossa sina, era um abrir de horizontes insubstituível.

A barragem de Santa Clara, construída nos anos sessenta com o objetivo de fornecimento de água e rega foi, até à barragem do Alqueva, a maior de Portugal e uma das maiores da Europa.  Ficou situada a três quilómetros da aldeia, e veio mudá-la completamente e a toda a região.

A pousada de Santa Clara, no alto da serra e com vista privilegiada para a água, assim como outros pequenos hotéis e o alojamento rural, começaram a atrair para esta zona muitos nacionais e estrangeiros que procuram tranquilidade, desportos aquáticos, pesca desportiva, entre outras atividades. O saboroso achigã abunda nas águas da barragem e as caldeiradas deste peixe de rio são muito apreciadas.

À entrada da aldeia, encontra-se a igreja de Santa Clara de Assis, datada do século XVI,  que deu o nome à aldeia.  Atravessado o Largo, desce-se uma rua estreita cuja ladeira leva ao rio. Dele, o que resta é um espelho de água artificial e espaços ajardinados para convívio. As passadeiras continuam lá, testemunhos dum passado que também foi meu, em que as águas do Mira por ali corriam, vindas da Serra do Caldeirão para desaguar no mar, na formosa vila de Milfontes.

Manuela Marujo

 

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Imagens cedidas por Manuela Marujo

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