Viagens

A ilha das pedras negras

Foi um sedutor marinheiro americano quem, nos meus anos de juventude, me falou sobre a ilha do Pico, nos Açores, com tal admiração e fascínio que jurei a mim mesma ir ver esse lugar com os meus próprios olhos. Nessa altura, a ilha era ainda terra de baleeiros; da boca dele, ouvi histórias sobre a bravura dos picarotos, caçadoresafamados de baleias que deixaram a sua terra e foram caçá-las para a América.

A Ilha da Montanha, como é conhecida por muitos, de pedras de lava negras resultado de erupções há muitos milhares de anos, e com formato de vulcão, lembra-nos, por causa disso, a sua formação.  Tenho pena de nunca ter subido ao cume, ao “Piquinho” mas, por outro lado, percorri, na Gruta das Torres, túneis impressionantes escavados pela lava ardente nas entranhas da terra, uma experiência imperdível para quem quer conhecer a ilha por dentro e por fora.

Das diversas vezes em que visitei o Pico, guardo lembranças inolvidáveis. Fui na altura das Festas do Divino em que a religiosidade do povo açoriano se revela de forma única, com suas coroações cheias de pompa e cor. A partilha das sopas, da carne, do vinho e das rosquilhas doces estende-se a todos, locais e visitantes, com uma generosidade sem igual. Participei numa festa de São João – bailaricos animados com chamarritas -, em que a alegria e convívio genuínos me fizeram esquecer estar longe da família e amigos.  Aceitei o convite duma família de pescadores e, num barco precário, acompanhei, no canal, a procissão da Senhora dos Navegantes rezando para voltar sã e salva. Fui observar baleias, abundantes nos mares açorianos, aguardando ansiosa e entusiasmada pelo esguicho que denuncia a presença desse animal poderoso. As lágrimas vieram-me aos olhos, ao avistar vários desses cetáceos descomunais, e não pude deixar de pensar na coragem dos homens que, durante séculos, desafiavam aquela força da natureza.

Para compreender a Ilha do Pico é necessário ler a obra do escritor Dias de Melo (1925-2008).  Um dos seus livros “Pedras Negras” é primordial para quem queira conhecer a dureza da vida dos picuenses, em particular a dos caçadores de baleias, atividade que ocupava a maior parte dos homens, até à sua proibição, nos anos 1980.  Sidónio Bettencourt e Ermelindo Ávila são autores dos textos de uma publicação mais recente “A Balada das Baleias” (2007), com fotografias de Sérgio Ávila, um registo exemplar sobre a memória da baleação, que vieram lançar a Toronto.

Há na ilha dois museus que satisfazem a nossa vontade de conhecer o modo de vida e a indústria profundamente ligados a essa terra: o Museu da Indústria Baleeira em São Roque e o Museu dos Baleeiros, nas Lajes. Objetos utilitários e artísticos, pinturas, arquivo fotográfico, biblioteca especializada e exposições temporárias dão a qualquer pessoa a oportunidade de ficar a conhecer, de forma superficial ou profunda, a atividade da caça à baleia.

Passear pela ilha do Pico, a segunda maior em extensão de todo o arquipélago e com fraca densidade populacional, convida a parar em pequenas freguesias e vilas. Rochedos negros de formas agrestes abrigam praias de águas transparentes e convidativas para quem goste de mergulhar. É impossível, porém, não reparar nos “currais” de vinhas que atraem pela sua originalidade, com destaque para o Lajido de Santa Luzia e o da Criação Velha. São quilómetros de pedras de lava, dispostas em quadrados pequenos onde o verde da vinha inesperadamente sobressai.  Justificadamente, desde 2004, a UNESCO considerou a paisagem da cultura das vinhas Património da Humanidade e os turistas deslumbram-se com tal fenómeno. Em séculos passados, a reputação do vinho que ali se produz levou-o à mesa dos czares da Rússia. Agora, à disposição de qualquer um, não saímos sem o provar, deliciados.

Ao longo dos anos, fiz amigos originários do Pico. Já passei horas de convívio em “adegas” tradicionais onde a boa comida, vinho e conversas pela noite fora ajudaram a consolidar amizades. Recebo convites para voltar e ficar em suas casas, se assim o desejar. As lembranças que guardarei para sempre consolam-me e ajudam-me a encontrar a paz, nestes tempos de grande incerteza em que vivemos.

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Imagens cedidas por Manuela Marujo

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