Temas de Capa

“O que mata é a discriminação”

Morreram 8 homens só pelo facto de serem homossexuais. Em Toronto, em pleno século XXI. O homicida foi condenado, mas permanece sempre a sensação de injustiça quando a vida humana é assim tão depreciada e desrespeitada. Esta edição do Milénio Stadium homenageia todos os que foram ou são vítimas de discriminação e violência de género. Para que a verdadeira justiça aconteça – promovendo a reflexão e incentivando à mudança de mentalidades. Todos diferentes, mas todos iguais deve ser mais do que um lema, tem que ser a forma como nos olhamos uns aos outros – iguais na diferença.
Ana Cristina Santos é Professora da Universidade de Coimbra e tem dedicado a sua vida académica ao estudo destas questões de discriminação de género e violência sexual. Entre outros projetos, lidera o INTIMATE – Citizenship, Care and Choice: The micropolitics of intimacy in Southern Europe – que se tem dedicado a estudar as leis e as políticas sociais (em Itália, Espanha e Portugal), implementadas numa perspetiva de luta contra a discriminação, para revelar de que modo elas se têm refletido nas práticas da vida em sociedade. Com Ana Cristina Santos vamos tentar enquadrar o caso Bruce McArthur e o seu impacto.

 

Milénio Stadium – “Gostar de quem se gosta sem sofrer por isso” – o que falta fazer para que esta sua definição de cidadania íntima seja verdadeira também na comunidade LGBTQ? 

Ana Cristina Santos – Há dois caminhos principais que temos de percorrer até que a cidadania íntima seja respeitada em toda a sua diversidade: o caminho legislativo e o caminho educativo. O primeiro é por onde habitualmente se começa, numa abordagem de cima para baixo, que delimita a proteção jurídica e garante o reconhecimento formal da diversidade. Trata-se de um passo fundamental, não só pelo seu poder factual, mas também pela importância simbólica conferida à lei. Mas não se mudam mentalidades por decreto. E é aqui que entra a segunda parte, a da mudança sociocultural, que passe por um forte investimento na área da educação. Esse é um caminho longo, que nunca está terminado, por mais inclusivo que seja o enquadramento jurídico de um dado país.

 

M.S. – Já agora… o facto de nos referirmos com frequência à “comunidade LGBTQ” não será, só por si, uma forma discriminatória de olharmos para a diferença? Não estaremos a criar uma espécie de guetos… nós, os “normais”, e os outros?

A.C.S. – As categorias existem como forma de interpretação da realidade e de comunicação. Justamente porque nomeiam, as categorias conferem reconhecimento e permitem que funcionemos em sociedade, mas não são conceitos cristalizados no tempo nem fechados eternamente sobre si próprios. As pessoas estão sempre a aprender, a crescer, a transformar-se. Mas importa reconhecer que o ponto de partida não é o mesmo. Existe uma desigualdade que é estrutural e que empurra tudo o que escapa à (hetero)norma para as margens. Não é a existência de uma categoria que cria o gueto – o gueto sociocultural e político foi sendo construído por décadas de discriminação e opressão.

 

M.S. – Da sua experiência e trabalho científico realizado ao longo dos anos, o que pode dizer-me sobre a sociedade portuguesa, concretamente? Ainda tem a cabeça “em modo avião” (expressão sua), ou seja, desligada da realidade?  

A.C.S. – Embora com variações e nuances, há genericamente uma mudança notável no sentido de normalizar os afetos, ou seja, de não fazer disto do amor entre pessoas do mesmo sexo um bicho de sete-cabeças. Já no que se reporta às pessoas transgénero ou não-binárias nota-se uma grande desinformação e violência gratuita. Em todo o caso, estamos longe de valorizar de forma idêntica a experiência de afetos lésbicos, gays ou bissexuais, comparativamente ao incentivo familiar que recebem as relações heterossexuais desde cedo. Essa foi uma das grandes conclusões do projeto INTIMATE que coordeno desde 2014.

M.S. – No Canadá houve recentemente um caso policial/jurídico que dominou a atualidade – foi julgado e condenado Bruce McArthur, um serial killer. Matou 8 homens. Todos gays. Podemos dizer que este (o homicídio) é o escalão máximo da homofobia, mas há outros patamares de violência e discriminação. Todos igualmente preocupantes?

A.C.S. – Sabemos que a homofobia e a transfobia matam de muitas maneiras, nem todas através de homicídio. Por exemplo, tal como trabalhamos no projeto CILIA LGBTQI+, a precariedade laboral e o abandono e a falta de formação para lidar com pessoas idosas LGBTQ configuram patamares significativos de violência. De forma análoga, a incidência de ideação suicida ou depressão é uma causa direta da discriminação. E também por isso combater a discriminação é uma questão de saúde pública e dignidade humana.

 

M.S. – Na própria comunidade LGBTQ que impacto poderá ter um caso destes – será que o receio de assumirem a sua sexualidade aumenta? Será que se fecham cada vez mais? Ou pelo contrário, será que esta mediatização acaba por ajudar na luta contra a discriminação e lhes dá mais força? 

A.C.S. – Estes casos mediáticos convidam a um posicionamento, gerando uma onda de indignação e choque que pode eventualmente gerar solidariedade. É como se houvesse uma escala de gravidade – mesmo para o cidadão comum pouco sensibilizado para a diversidade sexual, assassinar alguém apenas porque é gay está errado. Essa é uma solidariedade de baixa intensidade, que dificilmente passaria no teste da inclusão, do tratamento igual, da simples aceitação de que a homossexualidade é tão saudável e desejável quanto a heterossexualidade, desde que a autodeterminação de cada pessoa seja respeitada. O outro lado disto, é associar este tipo de violência a uma determinada forma de vida, como se uma orientação sexual pudesse, e si mesma, ser mais ou menos indutora de tragédia. Mais uma vez importa sublinhar que o que mata é a discriminação, não é a orientação sexual de cada pessoa.

M.S. – Esta luta contra a discriminação, que no seu caso é também um objeto de estudo e desenvolvimento de trabalho científico, não tem fim à vista?

 A.C.S. – A história ensina-nos que onde há progresso, há risco de retrocesso. Nenhuma conquista de direitos humanos é um projeto terminado, e daí a necessidade de garantir um maior investimento na transformação sociocultural que permita que, ao nível das mentalidades, se atinja um patamar mínimo de responsabilidade coletiva. Vemos que Portugal atravessa um momento de inclusão desde o ponto de vista formal, em que o Estado assume crescentemente o seu papel de garante da igualdade entre todas as pessoas, respeitando assim a Constituição que, desde 2004, proíbe a discriminação com base na orientação sexual. Mas a formalidade da lei não assegura o seu cumprimento, nem anula a força do preconceito quotidiano, que se exprime na rua, no centro de saúde, no contexto familiar ou nas ilustrações sobre afeto e modelos familiares utilizadas nos manuais escolares, para dar alguns exemplos. Assim como o racismo se continua a fazer sentir de inúmeras formas, também a homofobia, a transfobia e o sexismo permanecem estruturais, tornando difícil a sua erradicação. E daí a importância acrescida da academia enquanto agente de produção de conhecimento informado e, logo, de transformação social no sentido de combater os preconceitos que advêm de desinformação e enviesamentos vários.

 

 

Ana Cristina Santos

Socióloga e Investigadora Principal no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Doutorada em Estudos de Género, Coordenadora dos projetos de investigação INTIMATE e CILIA LGBTQI+. Mais informações em www.ces.uc.pt

 

Madalena Balça

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