Temas de Capa

Momentos irrepetíveis

As vozes a sobreporem-se numa amálgama de sons, os gritos das crianças que não paravam de correr, não escondendo a excitação com a aproximação da noite mágica, o cheiro a fritos que se intensificava na mesma proporção que a mesa se enchia de travessas, e a canela, claro (há Natal sem canela?).

Os braços que não paravam toda a tarde – ora esticando a massa das azevias, ora batendo os sonhos (“à mão para ficarem como deve ser”…), as pernas que se queixavam das horas que suportavam corpos de gente que parecia estar a viver num frenesim, mas no rosto o sorriso permanecia. Sentia-se a alegria. Vibrava-se com cada chegada – os tios que vinham de Lisboa (uma Lisboa ainda muito longínqua), os primos. O volume de vozes sobrepostas aumentava, como que gritando – estamos juntos de novo. Era a nossa noite. Para os mais velhos, tempo de reunião e família, para os mais novos, tempo de brincadeira com os primos, mas também de espera ansiosa. E a ceia que nunca mais chegava. O bacalhau que fumegava, os grelos e as batatas. Os mais velhos deliciados e os mais novos a comer porque a noite exigia que ninguém se portasse mal.  Afinal, todos estávamos à espera do menino Jesus, que chegava sempre quando já não estava ninguém na cozinha. Finalmente, os sapatinhos eram estrategicamente colocados junto à chaminé e logo depois éramos todos enfiados numa sala, onde ficávamos algum tempo, estranhando que os mais velhos tivessem todos uma súbita vontade de ir à casa de banho. Até que ouvíamos o barulho que nos punha os corações aos saltos – acreditávamos mesmo que o menino Jesus chegava carregado com as prendas, descendo pela gigante chaminé da cozinha e acabava por cair atrapalhado, espalhando os presentes pelos respetivos sapatinhos. Havia sempre alguém mais afoito que corria desenfreado e só parava na cozinha, ainda na penumbra, mas recheada de presentes embrulhados em papéis coloridos e cheios de laçarotes.

Os gritos, as lágrimas, os abraços, as gargalhadas e a partilha. Estas são as marcas que permanecem na minha memória de outros natais. Olhando lá bem para trás, se por um lado há o sabor adocicado de uma infância feliz, fica no final o sabor amargo de saber que estes são momentos irrepetíveis. Há já demasiados lugares vazios na mesa e por mais que a família aumente, nunca ninguém vai substituir a tia Luísa, a tia Têtê, o tio João, a Teresinha e o meu pai.

Madalena Balça/MS

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