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“Estamos a assistir a uma ofensiva por parte da extrema-direita a pilares essenciais do Estado de Direito”

- Alexandre de Sousa Carvalho

Estamos a assistir a uma ofensiva por parte da extrema-direita-mundo-mileniostadium
Crédito: DR.

Alexandre de Sousa Carvalho, licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra e com mestrado em Estudos de Paz e Conflitos Africanos pela Universidade de Bradford, é investigador no EPRD Office for Economic Policy and Regional Development Ltd., investigador associado no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, encontrando-se a tirar um doutoramento em Ciência Política na mesma instituição. Nesta edição do Milénio Stadium, onde abordamos o crescimento da força e propagação das ideologias políticas extremistas, achámos importante perceber junto do mesmo, e numa perspetiva sociológica, as razões que estão por detrás desta realidade que a maioria vê como uma cada vez maior ameaça aos regimes democráticos.

Milénio Stadium: Temos vindo a assistir, nos últimos tempos, ao ressurgimento e crescimento da força de ideias extremistas, sobretudo de extrema-direita, um pouco por toda a Europa. De um ponto de vista sociológico, como podemos explicar este fenómeno? Descontentamento, tentativa de chamada de atenção, desconfiança, revolta…?

Estamos a assistir a uma ofensiva por parte da extrema-direita-mundo-mileniostadium
Alexandre de Sousa Carvalho, mestre em relações Internacionais e Ciências Políticas

Alexandre de Sousa Carvalho: A extrema -direita populista sempre esteve entre nós, pairando mais ou menos nas franjas em vários sistemas partidários na Europa durante décadas. Não é por acaso que o meio académico, desde a década de noventa do século XX, tem dado muito maior atenção a este espectro político do que a famílias ideológicas bem mais relevantes do ponto de vista eleitoral. O que tem mudado, além da sua crescente preponderância que se tem registado desde a mudança de século, é que a extrema-direita tem cada vez mais sido capaz de renegar ou camuflar o seu saudosismo das experiências fascistas da primeira metade do século XX, o que a caracterizou até à década de 80, e tem crescentemente adotado uma nova roupagem na sua estratégia de definição/criação de agenda e mobilização política: a do populismo. Esse crescimento eleitoral, embora tenha muitas razões que o expliquem, não é dissociável das mudanças que aconteceram precisamente no final da década de oitenta e inícios da de noventa: o fim da Guerra Fria, o abraçar por várias famílias ideológicas da supremacia da ordem liberal capitalista e da globalização e a euforia que as acompanhou; a derrota política de uma esquerda anticapitalista que se posicionava como alternativa à ordem vigente e que deixaram em aberto o lugar da resistência e rejeição. A extrema-direita populista começa a ganhar relevância nos anos 90, à medida que a globalização e o projeto de “integração” europeu começa a deixar algumas franjas das populações europeias para trás. Estas populações viravam-se para o seu sistema partidário e, à esquerda, perante o desaparecimento e descrédito dos partidos comunistas e da “terceira-via” dos partidos de centro-esquerda, viam apenas alternativas na direita e extrema-direita.

MS: Os conceitos de nacionalismo e populismo estiveram presentes desde sempre, mas podemos apontar a crise financeira de 2008 como uma das razões para esta “reviravolta”?

ASC: Há três momentos e respetivas reações no Ocidente que, para mim, explicam esta reviravolta. Por ordem cronológica: o 11 de Setembro de 2001; a crise financeira de 2007 nos EUA que vai adoptando novas roupagens, de crise bancária a crise das dívidas públicas na zona Euro; e a questão dos refugiados particularmente a partir do momento em que a chamada Primavera Árabe dá lugar ao chamado Inverno Árabe; Estes três momentos tiveram e têm impacto significativo na Europa: o primeiro despoleta predominantemente uma reação cultural no mundo ocidental contra a comunidade muçulmana, também por via dos ataques terroristas em Londres ou Madrid; o segundo momento é uma reviravolta económica: o optimismo do início dos anos 90 sobre a ordem económica mundial dá lugar a uma visão de que esta ordem deu um poder a determinados atores como o setor bancário que, independentemente das suas tropelias, são “too big to fail”, e esta narrativa foi transformada e reapropriada num passar de culpas entre países europeus com repercussões de imaginários nacionais, evidente por exemplo nas palavras do então ministro das Finanças holandês e presidente do Eurogrupo quando dizia que os países do sul da Europa gastam todo o dinheiro em copos e mulheres. O terceiro momento é um culminar dos momentos anteriores, uma reacção cultural e económica securitária  que trata migrantes e refugiados como potenciais ou dissimulados terroristas, que vêm impôr a sua cultura e colher os benefícios da civilização ocidental em detrimento dos nativos, num momento em que a crise e insegurança económica da crise financeira ainda se fazem sentir. Estes três momentos criaram um terreno fértil para o crescimento da extrema-direita se alavancasse no início deste século.

MS: Hungria e Polónia são dois países europeus com governos de direita nacionalista… Na Polónia, por exemplo, entrou recentemente em vigor uma lei que torna o aborto praticamente impossível, o que levou a que milhares de pessoas saíssem à rua em protesto. Mas o que está a acontecer aos regimes democráticos nos países em que os movimentos extremistas estão a surgir? Na realidade, na União Europeia, apenas a Irlanda, Luxemburgo e Malta não possuem representantes da extrema-direita nos respetivos Parlamentos…

ASC: Estamos a assistir a uma ofensiva por parte da extrema-direita a pilares essenciais do Estado de Direito, como a separação de poderes, ou a limitação e proibição de direitos e liberdades fundamentais. Uma das coisas que caracteriza esta movimentação da extrema-direita é a sua iliberalidade, ou por outras palavras, a implantação de medidas anti-democráticas na sua essência por via de mecanismos democráticos. A Hungria é um bom exemplo disto, ao aumentar restrições à liberdade de expressão, associação e manifestação. Na Polónia, abole-se a separação de poderes em nome da luta contra a corrupção, e os juízes podem vir a ser despedidos por questionarem as reformas judiciais.

MS: O que podemos esperar que aconteça caso estes movimentos continuem a “angariar” mais seguidores? Para que cenário estaremos nós a caminhar e que consequências podem daí advir?

ASC: A cola que junta estes diferentes grupos é a sua obsessão com o que (retoricamente) chamam (e rotulam, numa tentativa de homogeneização e desqualificação) de marxismo cultural e ideologia de género. Não apenas na Europa mas um pouco por todo o mundo, do Brasil à Índia, estamos a assistir a um ataque aos direitos das mulheres, aos direitos de minorias étnicas, a diferentes grupos consoante a sua orientação sexual, e a uma transformação reaccionária ao conceito de género, de Estado ou de democracia. E à medida que o peso eleitoral e representativo destes grupos vai aumentando, alguns partidos da direita moderada têm-lhes amparado o jogo, permitindo que esta cresça e se legitime à sua custa; e noutros países rejeitado liminarmente colaborar com esta. A direita portuguesa ainda não assimilou bem esta lição, particularmente o PSD. Era bom que Rui Rio olhasse para o que se passou no governo regional da Turíngia na Alemanha ou mais recentemente para o seu homólogo espanhol quando “separou as águas” entre a direita do PP e a direita do Vox aquando da moção de censura deste último ao governo espanhol. A legitimação da extrema-direita populista cria um problema existencial dos regimes democráticos. O próprio Chega em Portugal admite no seu programa político querer derrubar a 3ª República e instaurar uma 4ª República que se define pela sua essência neoliberal e chauvinista. Se Rui Rio realmente acreditasse que o seu partido é de centro e até de esquerda não legitimaria o Chega da forma entusiasta como o tem feito.

MS: A pandemia e as suas consequências sociais e económicas serão mais um importante teste à força e resiliência da União Europeia?

ASC: Sem dúvida. A chamada crise das dívidas públicas soberanas, apesar de não ser mais notícia, está bem longe de estar ultrapassada… e agora teremos que lidar com esta crise em cima também. Têm sido visíveis as dificuldades que as instituições europeias têm tido em lidar com a reconfiguração da direita política e a sua viragem para a extrema-direita. Juntar isso a uma crise económica que ameaça ser muito maior do que as que conhecemos e temos um contexto favorável para que a UE se parta por dentro. O Brexit já criou o precedente. Vão ser necessários alguns momentos clarificadores da essência da UE: o que são estes valores europeus pelos quais nos juntámos? Em que situação se encontram, e podemos salvá-los e reforçar sem “vender” esses princípios em nome de uma estabilidade, seja ela aparente ou momentânea? Será que a UE, num cenário de crise aguda internacional e num contexto de globalização que já criou diversas rachas nas suas fundações ao longo das últimas três décadas, consegue criar um ambiente favorável e recuperar a mitologia e sonho da construção europeia? Ou será que já passamos esse ponto de não retorno e esse mito por si só é já hoje insuficiente? A UE já passou por várias crises, mas também foi respondendo a estas com alterações no seu funcionamento e hierarquia. Veremos que resposta conseguirá dar a esta crise, pois a realidade é demasiado complexa e fluida para que eu me atreva a fazer uma previsão.

Inês Barbosa/MS

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