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Chão de memórias

"E não há leito, não há ventre, não há sequer ruína a dar chão às nossas memórias". -Mia Couto, Mulheres de Cinza

Chão de memórias-portugal-mileniostadium
Foto: Erik McClean

 

Quando nasci, o choro que denunciou a minha chegada foi um pregão público a anunciar a minha carta de alforria lavrada com o corte do cordão umbilical. A partir daquele momento primeiro, toda a minha informação genética vinha carregada da vontade de ter mundo. Numa idade sem memória me levaram de casa para bem longe e, à medida que fui crescendo, aprendi a chamar meu a outro chão que não aquele onde nascera. E não me lembro de alguma vez me ter questionado sobre as relações de pertença a este lugar onde me fiz gente, rodeada de toda a minha família nuclear – pais, avós, tios e irmãos.

Sabia que nascera na metrópole – como então se dizia – onde habitava toda a outra parte da família que nunca conhecera. De vez em quando, chegavam cartas a desejar que estivéssemos todos de boa saúde, que eles por lá ficavam bem, com novidades da terra e das terras, como as sementeiras ou as colheitas, segundo a época do ano, de um ou outro nascimento, um batizado ou casamento, festividades que seguimos de longe mas a que sempre ficamos alheios, até ao dia em que a família do nosso lado também os começou a celebrar. Chegavam também notícias de mortes, ligadas a nomes que não eram de ninguém próximo – um conhecido ou um vizinho.

Até ao dia em que a guerra colonial estalou, e passámos a temer que algum dos nossos virasse título do poema “O menino da sua mãe” por não alcançar o desígnio “Que volte cedo, e bem”. A partir de então, meu pai sentava-se junto do rádio da sala a ouvir diária e religiosamente o noticiário das 13 h, para perceber se estávamos a salvo de movimentos dos terroristas, nome dado aos que lutavam pela independência de um chão, que eu, erradamente, pensava ser meu.

Os compêndios eram os mesmos para todos os territórios do Império, como se este fosse uma só unidade, um chão matricial único. Foi nas suas páginas que, desde cedo, a minha imaginação aprendeu a navegar por rios e afluentes que banhavam terras que um dia sonhava conhecer, a parar em estações e apeadeiros estribada em carruagens que a minha memória recitava de cor, a subir serras e a descer vales por onde deslizava a cana da índia com que os apontava no mapa, a cavalgar lezírias onde me cruzei com touros e campinos, a galgar socalcos voltados para o Douro de onde se erguiam as cepas das minhas raízes, a fazer da mão pala de cada vez que perscrutava o horizonte do mar que, do Minho a Timor, banhava areias de Portugal.

Um dia, sem que nada nem ninguém nos tivessem preparado, o Império encolheu, ficando reduzido ao chão original a que voltámos, ensarilhados nas cordas com que havíamos de dar os nós dos futuros por tecer.

No passsdo dia 11, celebraram-se os 45 anos da Independência de Angola, o chão a que um dia chamei “meu”, porque cresci a ignorar a partilha dos demais possessivos. Só o compreendi mais tarde, num regresso acelerado pela urgência de dar segurança aos filhos que trazia – um em cada mão – num percurso inverso ao que anos antes fizera com minha mãe.

Há quem nunca se tenha reconciliado com este passado de perdas, e nele continue a viver das memórias com que alimenta a condição de vítima. Indiferente aos ventos da História, pensa ainda agarrar entre os dedos a vida a que nunca voltará. Gesto inútil para os que precisam urgentemente de abrir o leque dos possessivos além do “meu”, alargando-o a todos os que, por direito próprio, desfizeram as malhas que o Império tece.

Milenio Stadium - aidaBatista

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