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Carta esquecida num marco do correio

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Meu querido Pai Natal,

Espero que estejas bem de saúde. Eu não posso dizer que me encontre bem e, por isso, te escrevo esta carta na esperança de que me possas ajudar. 

Em anos anteriores, condicionavas a satisfação dos nossos pedidos à forma como nos havíamos portado durante o ano. Desta vez tudo foi muito diferente, e eu tenho a certeza de que o teu julgamento também há de estar de acordo com os tempos que estamos a viver. Não sei o que vais ter em conta na tua avaliação, mas eu vou já confessar-te que, mesmo sem estar preparada para o que nos aconteceu, fiz o melhor que pude. 

Em março, os meus pais ficaram em casa e tiveram de me explicar o que era o teletrabalho. Entretanto, a creche do meu irmão fechou, e também eu comecei a ter aulas pela televisão. Pela primeira vez, passámos a estar os quatro sempre em casa. No princípio, gostei muito porque só costumávamos estar todos juntos aos fins de semana e nas férias. Tinha os pais todos os dias para mim, em vez de só os ver naquelas curtas horas em que à noite gozávamos da companhia uns dos outros. 

Passados uns dias, comecei a perceber alguns desentendimentos entre o pai e a mãe. Tiveram de fazer da sala escritório e partilhar o mesmo espaço para trabalhar. Mudaram a disposição do mobiliário, e até compraram um biombo que passou a separá-los para lhes dar um pouco mais de privacidade. Depois, notei que era cada vez mais complicado para eles conseguirem conciliar as horas de trabalho com as solicitações constantes do meu irmão, que é ainda muito pequeno para perceber o que se está a passar. Percebia-se o alívio deles, quando ele fazia sestas mais prolongadas. Algumas vezes, durante os intervalos entre os diferentes blocos das minhas aulas, punham-no a brincar no meu quarto e pediam-me que olhasse um pouco por ele. Senti-me orgulhosa por confiarem em mim, e foi engraçado voltar a fazer alguns jogos, como fazer disparar os carrinhos de corda em pistas imaginárias para vermos qual deles batia primeiro contra a parede.

Com o passar do tempo, estar em casa e ter a companhia permanente dos pais deixou de ser tão agradável como eu pensara. Comecei a sentir saudades da minha escola, dos meus professores, dos meus colegas, dos amigos e dos avós que deixaram de nos visitar. Cansei-me de falar para os ecrãs, de estar presa em casa, de não poder brincar na rua, de ver familiares através das vidraças de casa ou das janelas do carro, de dizer adeus à distância e de soprar beijos na mão.

Apesar de ser ainda criança, compreendi muito bem o que se estava a passar à minha volta. Entendi todas as palavras novas que alargaram o meu vocabulário, bem como certas práticas que passaram a fazer parte do meu quotidiano – usar máscara, desinfetar as mãos com regularidade, manter distanciamento, evitar agrupamentos de pessoas, viver confinado, obedecer ao recolher obrigatório. 

Até aqui, Pai Natal, acho que o meu comportamento mereceria a tua aprovação, mas, à medida que o ano se vai aproximando do fim, também eu começo a ficar muito impaciente e a sofrer daquilo a que chamam o “cansaço da pandemia”. Sei que estes sintomas são causados pela falta de convívio com as pessoas de quem gosto, dos abraços, beijos e carinhos que não dou nem recebo há muito tempo.

Por isso, este ano, Pai Natal, não fiz nenhuma lista de presentes, porque percebi que nada disso me faz falta. Perdoa a minha impaciência e satisfaz este meu único pedido – que, no próximo ano, seja possível devolver todos os abraços, beijos e mimos que, durante estes meses, ficaram prisioneiros num corpo sedento de gestos de ternura.

Um beijinho muito grato,

Maria

Aida Batista/MS

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