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Amor sem fronteiras

Here’s The Thing Manuel DaCosta entrevista Carlos Lopes

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Entrevista da Camões TV nos estúdios da College St. em Toronto. Crédito: CamõesTV

Na semana em que o Milénio Stadium discute a questão de casamentos inter-religiosos, inter-raciais e interétnicos, e como as diferentes culturas se misturam e se transformam com essas relações, o convidado de Manuel DaCosta no programa veiculado pela Camões TV, “Here’s the thing”, foi Carlos Lopes, imigrante português, natural dos Açores, e que já vive em Toronto há 27 anos.

Carlos é homossexual assumido, casado com um parceiro equatoriano, e durante a entrevista avalia a evolução da comunidade portuguesa aqui no Canadá em relação a temas sensíveis, como a aceitação da homossexualidade e relações com pessoas de outros países ou raças. Admite que ainda faltam organizações ou grupos de apoio na comunidade sobre a causa gay, que poderiam ajudar aqueles que ainda sofrem com o preconceito ou falta de aceitação. Além disso, contou sobre sua união e a maneira natural como a sua cultura portuguesa se mantém, e acaba se misturando com a do parceiro, seja através da culinária, costumes ou idioma. Carlos também falou sobre o que acha que é preciso fazer para que as gerações mais novas continuem a cultivar as tradições portuguesas, para que dessa forma essa cultura não se perca através das gerações.

Manuel DaCosta: Por que emigraste para o Canadá?

Carlos Lopes: Nos anos 90 não havia muito o que crescer em S. Miguel, é uma ilha pequena, os trabalhos eram limitados então. Eu como tinha família aqui, pensei que o meu destino também era o Canadá, e quando cheguei aos 18 anos decidi então emigrar. Era o “american dream” para a gente. No caso dos açorianos, era mais o desejo de vir para o Canadá do que para os Estados Unidos.

MDC: Tu já vieste para cá com uma certa idade, então a tua cultura foi formada nos Açores. O que é que da tradição ou cultura açoriana permanece contigo?

CL: Quando eu vim para cá eu já tinha 18 anos, então eu lá vivi as festas populares, de freguesias, Carnaval… essas comemorações todas que ficam com a gente. E quando já estava aqui, claro, comecei a fazer amizades com outros portugueses e procurei seguir fazendo parte da cultura portuguesa, então íamos a bailes, festas de Carnaval, do Senhor da Pedra, Dia de Portugal, eu tentei agarrar-me o máximo que pude na cultura, porque quando se vem pra cá ainda jovem, como foi meu caso, é fácil perder à essas referências, especialmente se não tens muita família aqui. Eu dependia dos meus amigos para estar exposto à cultura portuguesa.

MDC: Quando deixaste os Açores com 18 anos e chegaste ao Canadá sentiste algum tipo de choque cultural? Ou integraste-te facilmente?

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Carlos Lopes é homossexual assumido, casado com um parceiro equatoriano. Crédito: Camões TV

CL: Não foi um choque porque eu conhecia muitas pessoas que viajavam, já que eu trabalhava na área do turismo em Portugal e, portanto, fui mais exposto a pessoas de diferentes nacionalidades. Apesar de ser de uma freguesia pequena, mudei-me para Ponta Delgada e vivi lá alguns anos, estava mais em contato com a cultura de outros países. Claro, o Canadá é um país multicultural então eu adaptei-me. Comecei a falar inglês imediatamente porque não vivi com portugueses e sim com canadianos, então o inglês foi forçado, além de que via muita televisão, lia os jornais, na época não havia redes sociais, então realmente foi uma imersão na cultura para me adaptar à cultura canadiana.

MDC: Tu como eras gerente do El Convento Rico, que também já está fechado há um ano e era um ponto de encontro na College Street, que dava vida a esta rua, como tem sido este ano passado para ti já que todos os eventos foram cancelados e discotecas foram fechadas?

CL:  Como é um clube que serve a comunidade toda, não e só o “gay culture”, ali vê-se gente de todas as raças, portuguesas, espanhóis, Médio Oriente. Eu sinto a falta, sinto a falta da vida de antes da pandemia, tem sido um ano bem difícil. Todos temos que adaptar a situação e mais cedo ou mais tarde tudo vai abrir outra vez.

MDC:   Desde que chegaste a Toronto, com certeza a tua família já sabia da tua orientação sexual em Portugal, mas como tens visto a evolução da vida gay?

CL:  Para mim é como ver um programa de televisão, a evolução que tenho visto nos últimos 27 anos. Realmente vi a mudança, sempre me senti bem cá no Canada, em Portugal não me sentia tão bem, era jovem, a aceitação era diferente.

MDC: Portugal é um país completamente católico, achas que a religião afetava muito a forma como eras aceite?

CL:  Exatamente, mas também já evoluiu. Portugal tem evoluído muito nestes últimos 27 anos, não estou lá, mas vejo isso. Mas aqui a evolução foi muito mais rápida, nunca me senti rejeitado, sempre me senti incluído, nunca me senti rejeitado, nem maltratado. Talvez uma coisa aqui e ali, mas nada que me impactasse e me fizesse sentir mal.

MDC: Como vês a vida gay na comunidade portuguesa?

CL: Eu sinto que há muitos portugueses que têm medo de assumir aquilo que são e alguns casados, eu não tenho muita experiência com amigos casados, mas mesmo certos amigos que são assumidos e que têm medo de se expor, por causa das famílias. Estou a falar tanto de homens como mulheres. Há ainda famílias que não aceitam, e claro, isso para uma pessoa que cresce sendo gay e não pode se expressar da maneira que é, é muito difícil.

MDC: Isso pode ser notado na evolução das organizações gays dentro da comunidade portuguesa que realmente, a bem dizer, não existem, e as pessoas não estarem à par do que se passa. Achas que não haver essas organizações que educam as pessoas tem sido negativo dentro da comunidade?

CL: Claro, qualquer pessoa que se sente fora da sociedade precisa de um lugar onde possa ir e sentir-se bem, sentir que as pessoas gostam dela, onde se possa expressar, e realmente nós tínhamos o Arco Íris, que foi um grupo que por muitos anos ajudou muito a comunidade gay e LGBT. Infelizmente com o tempo as pessoas afastaram-se, por uma razão ou por outra, então os jovens de hoje, portugueses LGBT, não têm aquele grupo de maiores, pessoas assim como eu, e outras pessoas que faziam parte da organização para poderem conversar, ou se quiserem um conselho, mas também há outros grupos a nível nacional que estão aí para ajudar.

MDC: O teu parceiro é do Equador. E isso e muito comum na comunidade gay, casais que são formados por pessoas de diferentes etnias, é difícil serem dois portugueses. Por que achas que isso acontece?

CL: Os tempos. Os tempos evoluíram, as famílias começaram a aceitar mais, e de certa maneira talvez tenham sido forçadas a aceitar, porque sendo português tu vais para uma escola multicultural onde tu conheces uma pessoa que seja latina, ou da Índia ou Oriente Médio. E se te apaixonas por essa pessoa, isso não tem a nada a ver com a cultura portuguesa, tem a ver com os sentimentos da pessoa, então muitas famílias foram forçadas a aceitar isso, e claro que com o tempo, a comunidade também aceitou.

MDC: Quando se juntam duas culturas, por exemplo, um português e um equatoriano, como no vosso caso, como é que vós balançais o que fazeis, e como lidam com as diferentes culturas, para que nenhuma desapareça ou uma sempre prevalece em relação à outra?

CL: Falando do meu caso, para nós é importante a comida. Ele cozinha muito bem, então eu tenho a sorte de comer comida equatoriana quase todos os dias, já eu como não sou tão bom na cozinha, ele tem pouca sorte. Mas vamos a restaurantes portugueses, temos amigos portugueses que cozinham comidas típicas, e ele adora a nossa comida. Nos primeiros três anos da nossa relação ele não podia viajar e eu ia a Portugal, a S. Miguel, ver a minha família e sempre dizia que esperava muito pelo dia que ele pudesse conhecê-los, conhecer a minha cultura. E de facto, isso aconteceu há dois anos, ele foi comigo e apaixonou-se. Ele adora S. Miguel, adorava comprar uma pequena casa um dia nas Sete Cidades, apaixonou-se por lá. Adorou a comida, nossas festas, tudo. Eu já tinha sido exposto à cultura dele porque viajei muito ao Equador em trabalho, e foi assim que nos conhecemos.

MDC: Se tu fosses comparar a cultura dos Açores com a do Equador, já que já passaste lá algum tempo, o que mais admiraste dessa cultura e o que achaste mais interessante?

CL: Muitas pessoas pensam que o Equador, assim como outros países da América Latina, são países de terceiro mundo, porque é a informação que lhes chega. Mas a minha experiência cultural foi incrível, sim, tem partes que te levam atrás, como a cultura, as comidas, os indígenas, os edifícios, a arquitetura…mas são países também que já evoluíram muito, têm cidades incríveis, modernas, alta tecnologia, tudo. Então foquei-me em tudo, não apenas num aspeto e acho que a maioria das pessoas deveria explorar um pouco mais. Muita gente, por exemplo, vai sempre ao Caribe, mas se tivessem a oportunidade de viajar para outros países encontrariam uma cultura incrível.

MDC: Achas que por estares envolvido no dia a dia com uma pessoa do Equador e a partilhar hábitos culturais típicos desse país, de alguma maneira diminuiu o teu interesse pela cultura portuguesa?

CL: Não, absolutamente nada. Eu se tivesse mais oportunidades de me expor mais ainda à cultura portuguesa, eu faria. Continuo a gostar da minha comida, de viajar a Portugal, tenho o sonho de fazer uma viagem pôr Portugal inteiro, desde o Porto até ao Algarve. Conheço muito pouco do país, apenas os Açores, São Miguel, duas outras ilhas, mas Portugal tem uma cultura linda e eu quero conhecer mais, assim que tiver essa chance.

MDC: Em relação à vossa família,, há aceitação por parte deles, em função de serem de países diferentes?

CL: Claro, a minha família abriu as portas para ele, do fundo do coração, adoraram-no. Teve a curiosidade por ele ser equatoriano, em relação à culinária, idioma, essas questões. Eu tive que aprender o espanhol, na verdade já sabia um pouco, mas tornei-me fluente por causa da relação. O português ele tenta, a gente ri-se muito às vezes da maneira como ele pronuncia certas palavras, é divertido, e ele está a tentar melhorar o português dele também.

MDC: O que pensas que faria falta para reacender o fogo cultural português dentro de um país como o Canadá, afinal nós somos imigrantes, tentamos manter um pouco da nossa cultura e, ao mesmo tempo, abraçando muitas outras culturas que aqui vivem. O que achas que faria a diferença, para que não perdessemos tudo completamente, já que esse parece ser o caminho que seguimos?

CL: Toronto é uma cidade muito multicultural, temos o Little Italy Festival todos os anos, Greektown, Chinatown e são lugares muito conhecidos, e as pessoas de outras culturas querem experimentar as comidas, tradições, música, tudo isso. Os portugueses estão a perder isso porque não estão a por a mesma vontade de antes, penso que depende dos líderes da comunidade, das pessoas que têm a capacidade de fazer esses eventos, festas, se eles se juntassem, deixassem as políticas de lado, e trouxessem aquelas nossas tradições de volta, a comunidade adoraria isso.

MDC: Cerca de 60% da 3ª geração casa-se com pessoas de outras etnias, portugueses por exemplo, com gregos, italianos, além de outras. E muitas vezes uma língua vai predominar, muitas vezes é o inglês, e já não se pratica a língua-mãe, e muitas vezes o casal opta por uma língua. E os filhos crescem numa confusão, não sabem que língua falar, e acabam por falar inglês. Serão essas crianças e jovens que teremos que atrair. Achas que já perdemos a batalha? 

CL: Não, acho que ainda existem muitas oportunidades. É só uma questão da comunidade se juntar. Daquilo que me lembro bem, nos últimos três anos por exemplo, dizia a meu parceiro, “vamos à Parada de Portugal” e já não sentia o mesmo fervor do passado, acho que trazendo isso de volta vai atrair a nova geração, eles vão querer fazer parte disso.

MDC: Se tu fosses dar uma mensagem para a comunidade como um homem gay que gostava de ver certas coisas acontecerem na comunidade, seja alguma organização de apoio, algo do tipo, o que gostavas que acontecesse no futuro para que houvesse mais inclusão?

CL: Eu acho que as pessoas têm que chegar à conclusão que ninguém escolhe ser diferente. É uma questão genética, já nascemos da maneira que somos. O que é muito triste é deixar uma pessoa sofrer a vida toda porque tu não queres aceitar a maneira como a pessoa é. Então para aqueles muitos pais que não aceitam, que não querem aceitar, pensem o quanto o seu filho ou sua filha está a sofrer por não serem amados da maneira que querem ser amados.   

Transcrição: Lizandra Ongaratto

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