Temas de Capa

A alheira da salvação

Nada mais português que um bom enchido – seja ele qual for: chouriço, morcela, farinheira, etc. A verdade é que há sempre uma boa salsicha com carne, seja de que forma for, com os ingredientes escolhidos a dedo por cada região ou por cada um de nós que decida mudar sabores. No entanto, temos que dar os créditos à alheira de Mirandela – nada mais conhecido que uma bela duma alheira de Mirandela! E a história por trás desse enchido faz com que a tradição culinária e a história de Portugal andem, realmente, de braço dado.

Acredita-se que a alheira remonta ao século XV, inícios do século XVI, quando Fernando de Aragão e a sua mulher, rainha Isabel de Castela, conquistaram o último bastião mouro da Península Ibérica e invadiram o Palácio da Alhambra. Ambos absolutamente católicos, os reis defendiam que os judeus podiam ser um motivo de distúrbio, porque podiam incentivar os que, entretanto, se tinham convertido ao cristianismo a regressar à religião original. Para combater essa possibilidade, decidiram contratar interrogadores para perseguir judeus no seu reino – a Inquisição espanhola identificava então quem fosse judeu e estes eram torturados e, inclusivamente, queimados vivos.

Para se protegerem e não serem, assim, reconhecidos, os judeus escondiam-se e formavam comunidades que se fingiam ser cristãs. Escreviam em hebraico e simulavam rituais católicos. No entanto, em Trás-os-Montes a originalidade bateu todos os recordes – uma das formas principais para identificar judeus era perceber se estes comiam carne de porco, porque a sua religião não lhes permite o consumo deste tipo de carne, de forma nenhuma. Por isso, genialmente, para enganar a Inquisição, os habitantes de Mirandela criaram uma salsicha feita com pão e frango, muito parecida com os tradicionais chouriços e farinheiras. Quando abriam as suas portas aos inquisidores, lá estavam elas penduradas ao fumeiro, como que a dizer “veem, nesta casa não há judeus! Até se fabrica e come chouriço tradicional, seco ao fumeiro”. É caso para dizer “com papas e bolos se enganam os tolos…” – e assim surgiu a famosa alheira.

De forma completamente surpreendente e até engenhosa, a gastronomia teve aqui um papel fundamental para a sobrevivência do povo judeu em Portugal.

Nos dias de hoje, a alheira faz parte dos pratos típicos da cozinha portuguesa e, imagine-se, é apreciada por pessoas de todas as confissões religiosas. Em pleno século XXI, a alheira não fugiu do toque de modernidade que a cozinha exige e, também para agradar a “gregos e troianos”, encontramos à venda alheira de bacalhau, com carne de porco, carne de caça ou até vegetariana! As variações são muitas! Até porque os grandes chefes de cozinha também a descobriram como excelente elemento a utilizar na sua cozinha gourmet.

Depois de salvar milhares de judeus, atravessou as montanhas de Trás-os-Montes e chegou ao resto do país, unindo povos pelo seu (muito bom) sabor.

Catarina Balça

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