OpiniãoAida Batista

Sonata de outono

“Quem sai do seu lugar, nunca a si mesmo regressa.” Mia Couto

 

Sonata  de outono-toronto-mileniostadium

Quando me sentei para escrever esta crónica – e sem que eu consiga explicar o tipo de associação que, inconscientemente, se processou -, lembrei-me de uma música. À semelhança daquelas manhãs em que acordamos com uma canção na boca e a trauteamos no banho, ela persiste em continuar agarrada mim o resto do dia, sem que eu saiba se fui eu que a escolhi, ou se foi ela que me escolheu – “Sim/ eu sei/ que tudo são recordações”, diz o refrão.

Vitor Espadinha, um ícone do nacional cançonetismo, atua na folha de palco improvisado em que se transformou o meu texto e já senti, mais do que uma vez, o fio do microfone a ser puxado para o outro lado, para não ficar enredado nas palavras que saltam do teclado do computador. Só encontro uma explicação: sempre que recordo Toronto, invade-me uma profunda nostalgia.

Será impossível esquecer a primeira impressão que a cidade me causou. Comecei por conhecê-la através dos postais que habitualmente a representam a partir do lago, num emaranhado de torres que circundam a CN Tower. Esta primeira imagem passa a mensagem de que uma amálgama de betão nos esmaga. Quando cheguei, foi surpreendente descobrir que a proximidade entre os arranha-céus e as zonas residenciais, os parques e os jardins, é tão grande e em tal quantidade, que, por entre a diversidade do tecido urbano, o olhar descobre sempre um lugar onde descansar.

As cores do outono, essas, não constituíram propriamente uma novidade; eram-me familiares pela experiência já anteriormente vivida na Finlândia, país onde esta época do ano toma a designação de “ruska”. Apesar disso, em Toronto, as cores ganham outras tonalidades porque, ao contrário de Helsínquia, a cidade possui uma luminosidade muito própria, e a quantidade de árvores dentro do perímetro urbano estende verdadeiros tapetes de folhas das mais variadas cores. Não resistimos à tentação de apanhar uma, mais à frente outra, e ainda outra, na busca incessante de coleccionar as mais belas. Ao fim de pouco tempo, descobrimos que é uma tarefa inglória porque encontramos sempre uma mais bonita do que a anterior.

Pensar na cidade agora é lembrá-la vestida dessas cores. Debaixo dos pés senti a música das folhas calcadas na primeira caminhada, da Roxton Road até à Sussex Avenue, onde ficava o departamento de Espanhol e Português da Universidade.

Foi desse chão – escolhido por muitos como destino de emigração – e das gentes que o pisaram ao longo das várias estações dos calendários da vida, que arranquei folhas que serviram de fundo às minhas crónicas. Umas carregadas de tons mais escuros, outras mais alegres e vibrantes, mas todas elas a testemunharem vivências daqueles que um dia renunciaram a um chão para escolherem outro, por muito longe que ele se apresentasse no horizonte da mudança.

Ficar preso a um lugar, significa muito mais do que a saudade de o reviver. É o registo de um tempo que deixou marcos com que se assinalam as extremas das leiras de uma vida, de tal modo lavrada que, após a colheita das novidades da época, exige o pousio merecido.

Buscando agora outro registo – o de José Mário Branco -, quando repito que «…  vou pra longe/ pra muito longe…», tenho a certeza de que há um lugar onde «…nos vamos encontrar/ com o que temos pra nos dar», enquanto a reciprocidade for um bem cultivado apenas na troca “em espécie”, como no tempo em que o dinheiro ainda não existia.

Não fora a pandemia e já teria voltado a Toronto. E a razão que me move é, e será sempre, o reencontro com velhas e verdadeiras amizades, bens transmissíveis apenas na linha testamentária de uma convivência desprendida e despojada de outros interesses.

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