Opinião

Saber olhar o céu

“Os Céus d’Os Lusíadas” foi o título de uma conferência organizada pela Casa Memória de Camões, em Constância, no passado sábado (17). Quando recebi o convite, de imediato me senti fascinada ao ler na sinopse que a organização prometia um serão de cultura e ciência, “num cruzamento entre poesia e astronomia”.

Fosse porque não tivéssemos ainda maturidade suficiente, fosse porque o programa instituído obrigava a uma exaustiva análise morfológica e sintática em detrimento da beleza literária, fosse porque tudo quanto nos é imposto desencadeia sentimentos de rejeição, a maioria dos da minha geração não guarda boas memórias do primeiro contacto com o nosso poema épico.

Por isso, ao ouvir naquela noite Ana Maria Romãozinho Dias, tive a nítida sensação de que não estava perante o mesmo texto estudado no meu já tão distante 5º ano do Liceu. A divisão das orações, pese embora a exigência do conhecimento que esse saber exigia, não seria agora importante. O que íamos fazer era, através de estrofes devidamente escolhidas, olhar para o céu de Camões, descrito numa época em que ser capaz de se orientar pelos astros fazia parte de um saber ancestral, plasmado na mitologia, como prova a ajuda da ninfa Calipo ao aconselhar Ulisses a seguir a Ursa Maior para melhor se orientar. Hoje não precisamos de o fazer, porque o GPS nos leva a todo o lado, num registo sincopado e monocórdico em vez do mavioso canto das sereias.

A travessia desses mares nunca dantes navegados, convidava a olhar o céu como se de uma pintura se tratasse: «Olha por outras partes a pintura/  Que as Estrelas fulgentes vão fazendo: /Olha a Carreta, atenta a Cinosura,/ Andrómeda e seu pai, e o Drago horrendo; / Vê de Cassiopeia a fermosura/ E do Orionte o gesto turbulento; / Olha o Cisne morrendo que suspira, / A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.” (C. X, est. 88).

Muitos de nós havíamos esquecido que a Carreta era a Ursa Maior, a Cinosura a Ursa Menor, bem como outras cujos nomes e formas há muito não recordávamos. Estas eram já conhecidas dos navegadores, mas à medida que avançavam para Sul, uma nova constelação se dava a conhecer – o Cruzeiro do Sul: “Já descoberto tínhamos diante,/ Lá no novo Hemisfério, nova estrela,/ Não vista de outra gente, que ignorante/ Alguns tempos esteve incerta dela./ Vimos a parte menos rutilante,/ E, por falta de estrelas, menos bela,/ Do Pólo fixo, onde ainda se não sabe/ Que outra terra comece, ou mar acabe.” (C. V, est. 14). 

Claro que as estâncias aqui citadas nada nos dizem sobre a beleza poética da explicação, nem sobre os apartes ligados à astronomia, cujos créditos literários a conferencista não deixou por mãos alheias. De acordo com as regras clássicas – seguidas por Virgílio, na Eneida e Homero, na Ilíada – a narrativa da viagem à Índia não segue a ordem cronológica, mas começa a meio da história – “Diversos céus e terras temos visto” (C.I, est. 51) -, técnica literária designada por “in media res”. 

Assim, muito agradou aos presentes, ter-lhes sido lembrado como Camões apenas no canto V aponta a data da partida das naus (8/7/1497), sem explicitamente a indicar, mas recorrendo a referências ligadas aos astros. Foi este firmamento, na altura geocêntrico, feito de sóis descritos como eterno lume e luas de meio rosto e rosto inteiro, que naquela noite fomos observar através de um telescópio colocado no terraço do edifício.

No início da apresentação, foi-nos dito “O céu é ainda o mesmo, os nossos olhos é que não”. Dotados de outras tecnologias, já não o vemos como os nossos antepassados o viam, embora nos mantenhamos rendidos à intemporalidade da sua esfera poética.

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