Opinião

Ponto de encontro

“Que importância faz se seguimos por caminhos diferentes, desde que alcancemos o mesmo objetivo?” - Mahatma Gandhi

Educada na fé católica, fui submetida a uma intensa militância religiosa que obedecia aos dias de jejum e abstinência, à privação da carne em cada sexta-feira da quaresma, aos terços rezados todas as noites em família antes do deitar, à oração de agradecimento a anteceder as principais refeições (pela graça de ter comida no prato), à missa e comunhão dominical e noutros feriados religiosos, à confissão periódica e às procissões em datas festivas.

O colégio das Doroteias, para onde fui estudar aos seis anos de idade, prolongava todo este proselitismo incentivando-nos à prática de outros sacrifícios pela salvação das almas e conversão da Rússia! Quem, da minha geração, não se lembra desta intenção – a salvação da Rússia? Desde que se salvasse a Rússia, ignoravam-se todas as atrocidades praticadas pelo resto do mundo.

Entre os mais diversos sacrifícios, recordo bem os mistérios do terço rezados de braços em cruz, levantados à altura dos ombros, ou com lápis facetados debaixo dos joelhos, a provocar esgares de dor e desconforto.

Admito que hoje já não sou praticante, de acordo com estes cânones em que fui criada. Respeito, no entanto, a fé de cada um porque para mim é muito claro que as crenças e convicções são um território que não deve ser questionado, a menos que os seus detentores apreciem um debate salutar sobre o assunto.

Na minha família, sempre houve uma devoção especial a Nossa Senhora de Fátima, e lembro-me de uma imagem da Virgem, de tamanho razoável, ser presença constante na cómoda do quarto de meus pais, em Benguela. Já em Portugal, conheci outra, bem mais modesta, mas nunca perguntei o que acontecera à anterior. Presumo que a preparação apressada da viagem provocada pela igualmente apressada descolonização, a deve ter impedido de viajarem juntos. De cada vez que remexo nas minhas memórias, mais me dou conta do infindável número de perguntas que ficaram por fazer, para que estes registos não continuem a colocar pontos de interrogação nas minhas incertezas.

Na adolescência, passei, como todos os jovens, por uma fase de rebeldia que tudo punha em causa, sendo a religião um dos alvos preferidos da minha contestação. Insurgi-me contra preceitos e determinadas práticas religiosas, mas nunca cheguei ao ponto de negar a importância da religião, como esteio para a vida, independentemente da leitura que cada um dela possa fazer, contrariando, assim, Saramago que defendia ser o mundo mais pacífico se fôssemos ateus.

Quando meu pai ficou viúvo – sem que nada o fizesse prever, dado que minha mãe fora sempre uma pessoa saudável -, agarrou-se à fé e aceitou, de forma resignada, sujeitar-se ao que fora a vontade de Deus, como ele dizia. Conformado, continuou a frequentar a Igreja, a ela se entregando com mais fervor, dado que a sua disponibilidade passara a ser maior. Eu, pelo contrário, levei bastante tempo a aceitar um desígnio tremendamente injusto, questionando com frequência a teoria do livre arbítrio. Inconscientemente, acho que falar sobre o assunto era uma forma de trazer minha mãe de volta, mantendo-a viva através das nossas conversas.

Gosto, no entanto, de visitar igrejas, santuários e outros lugares sagrados de culto, independentemente do nome do Deus em que foram erigidos. Algumas vezes por ano, vou ao Santuário de Fátima, lugar de peregrinação a que, noutros tempos, me habituei a ir com a família. Nunca o faço nas datas das grandes enchentes. Prefiro o vazio, o silêncio e a espiritualidade envolvente de um espaço que convida à meditação. E não me peçam para explicar de onde me vem essa certeza, porque ela simplesmente existe e eu sinto-a em forma de abraço, neste ponto de encontro entre os que ainda estão e os que já partiram!

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