OpiniãoAida Batista

Peregrinação de outubro

Agora permanecerei em silêncio, e deixarei o silêncio separar aquilo que é verdadeiro daquilo que mente. - Jalaladim Maomé Rumi, poeta persa

Esta semana decorreu em Fátima mais uma celebração de 13 de outubro, dia da última aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos. Desta vez, em circunstâncias bem diferentes – com lotação reduzida a 6000 fiéis e círculos no chão a demarcar a distância regulamentar de segurança a que devemos estar uns dos outros. O mar de gente que de lenço branco acenava à Virgem, e cobria de luzes o chão sagrado do santuário, deixa agora a descoberto, por via destes cordões sanitários, os espaços que impedem a aproximação dos crentes sem qualquer laço de familiaridade.

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Foto: Patricia De Melo Moreira / Afp

Linhas traçadas por outra conjuntura do destino ditaram que o teu aniversário coincidisse com esta festa religiosa, sem que isso alguma vez tivesse contribuído para despertar em ti qualquer interesse por práticas que determinadas crenças exigem. Exceção, contudo, para uma especial devoção à Virgem, que, no entanto, nunca visitavas em dia de enchentes. Preferias o vazio dos dias e das horas em que poucos lá estavam. Dizias que era assim que te sentias bem, abraçado pela espiritualidade do silêncio. Contudo, cumpriste um ritual até poderes – o de lá ir ao dia primeiro de cada ano, assegurando a perpetuação de um tempo em que, a pedido, lá levavas a tua mãe.

Voltar agora a Fátima é também para mim o cumprimento de um rito que, sem nunca mo teres exigido, celebra a liturgia de um luto prolongado no tempo. E, sem querer, dou por mim a falar contigo, a contar-te novas, a dizer-te quanto tudo mudou desde que partiste. Como era habitual fazer desde que a cadeira de rodas te negou a rua, e era eu quem levava a rua até ti, num desfiar de terços de novidades que tu gostavas de saber. Coisas insignificantes, sem importância de maior, diria mesmo supérfluas, como são quase todas as coisas com que se tecem os fios da quietude dos dias. E tu, alternando reações de espanto com as de concordância, comentavas, davas a tua opinião ou simplesmente encolhias os ombros, que era a forma mais eloquente de dizeres que pouco ou nada importava, que não querias saber. Há pessoas que falam pelos cotovelos, reza a expressão popular, esquecendo-se que tanto podemos dizer com os ombros.

Passaram mais de cinco anos, mas a contabilidade das ausências não se mede pela cronologia dos anos que se baralham na contagem dos dias que passam ou não, conforme os enchemos das memórias do que foi vivido.

Dia 13 celebraste mais um aniversário. Em peregrinação, recordo de como era sempre um dia diferente, festejado com um passeio, uma ida ao restaurante, a surpresa de um presente, interrompidos por telefonemas da família e dos amigos a desejar saúde e votos de que muitos mais se cumprissem. E tu, para os contrariar, respondias: “Só peço um de cada vez!” E, já voltado para mim, como quem me atira com a responsabilidade do que poderia advir, acrescentavas: “E hei-de chegar aos cem!”, dito com uma ingenuidade de criança que nunca aceitaria cortes ao normal curso dos seus desejos.

A vida encarregou-se de te contradizer e tu, resignado, foste aceitando que, entre os teus desígnios e os do destino, poderia afinal haver um desfasamento temporal que não te seria possível controlar. E tudo foi ficando mais longe, ao mesmo tempo que a distância do fim se foi encurtando, lentamente, como lentas foram as horas de espera na linha que marca a fronteira entre a vida e a morte. Que, para ti, contrariamente ao que hoje acontece, ainda foi digna – porque acompanhado e com direito ao ritual da despedida. E a consciência disso dá-me paz, muita paz!

Leia os artigos de opinião do Milénio Stadium aqui.

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