Opinião

O pico passou a salto

Viver em tempo de crise, seja ela de que natureza for, desperta sempre o que de melhor, mas também o que de pior existe em cada um nós. Sempre assim foi, e continuará a ser, porque o ser humano contém em si esta dualidade de comportamentos que oscilam entre o bem e o mal, em proporções nem sempre simétricas.

Por isso, tem sido tão bonito assistir a gestos de uma inexcedível generosidade a par de outros que desenterram fantasmas, que a História se encarrega de nos lembrar, na esperança de que não se voltem a repetir. Mas a verdade é que eles aí estão, bastando para isso que uma janela de oportunidade permita a alguém, levianamente, espreitar por ela, para dar expressão a sentimentos acusatórios contra bodes expiatórios que expliquem o inexplicável.

As redes sociais são agora o terreno privilegiado de onde brotam estas vozes tão predispostas a apontar o dedo seja a quem for.  Nos primeiros dias, não faltaram vídeos, textos, manifestos, petições e até grafitis, amplamente divulgados e partilhados, contra a China e os chineses. Por mais que a comunidade científica tenha publicado artigos a desfazer a ideia de que não se tratava de um vírus produzido em laboratório, nada as calou porque cavalgar a onda proporciona os “likes” que afagam o ego da raiva.

Depois, começaram por denunciar todos os conterrâneos migrantes que, tendo casa na casa aldeia, dela fizeram o retiro do seu confinamento. Apressaram-se a denunciá-los como se estes não tivessem o direito de escolher onde se sentiriam melhor a cumprir as regras sanitárias impostas. Não, não podiam, porque, além da bagagem habitual, traziam consigo o “kit” do contágio. A seguir, e já tardava entre os arautos do costume, a manifesta má vontade contra os nossos emigrantes que mostrassem vontade de passar a Páscoa com os seus.

É do conhecimento de todos nós o quanto certas festividades religiosas representam para grande parte dos que partiram, em especial dos que são oriundos das zonas rurais. Para esses, a Pascoela ganha particular destaque porque é o dia em que o padre abençoa as casas daqueles que o desejam. Apesar da ausência de anos, oiço ainda ressoar no Douro Vinhateiro a argumentação de meus pais: “Filha, não se fecha a porta ao Senhor”!

Por isso, não seria de estranhar que muitos tivessem mantido, até quando foi possível, a esperança de  poderem celebrar a Páscoa no torrão natal. O estado de emergência atempadamente cancelou o espaço aéreo e fechou as fronteiras terrestres, cortando pela raiz qualquer veleidade nesse sentido. No entanto, os defensores da moralidade e dos bons costumes continuaram na sua sanha persecutória, não se coibindo de denunciar matrículas estrangeiras, que irrompiam pelas estradas dos seus quotidianos tranquilos. Parafraseando o Velho do Restelo, esqueceram-se do inimigo à porta, buscando os que vinham de longe! Previam, assim, que o pico da pandemia ou a aceleração da curva iria acontecer logo depois da Páscoa.  E tudo por culpa destes incautos emigrantes, que se portam muito bem e cumprem as regras nos países de acolhimento, mas ganham tiques de alforria assim que entram em solo pátrio!

Decorreram mais de 15 dias, os mínimos exigidos para se fazer uma avaliação da situação, e, para grande desilusão destes profetas da desgraça, não se concretizou o que haviam vaticinado. Segundo os dados à nossa disposição, o pico parece já ter sido atingido, a curva não subiu, mantendo-se a linha de planalto, e o Serviço Nacional de Saúde não colapsou. Uma tremenda desilusão!

Entretanto, os “posts” e os comentários andaram pelos murais a engrossar o caudal do rio dos ressentimentos. Alguns arrependimentos, de tão tardios, já não conseguiram limpar os detritos depositados nas margens.

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