Opinião

Narrativa aberta

Fui com uma amiga ver um filme. À saída comentámos o enredo – muito atual, voltado para os encontros e desencontros que as redes sociais podem provocar -, e o facto de, no final e perante a descoberta da verdade, a narrativa permitir a cada um de nós as mais diferentes leituras de acordo com as nossas posturas perante a verdade. Há quem simplesmente entre em negação, preferindo, por comodidade, continuar a viver na mentira; há quem a aceite, mas mantenha uma conduta como se nunca dela tivesse tomado conhecimento, guardando-a no mais íntimo de si; e há quem altere radicalmente o seu plano de vida, em função de rotinas com que a verdade veio colidir.

Seja qual for a decisão, todas elas são válidas quando se acredita que o melhor caminho é aquele que corresponde a uma forma de estar na vida que nos faz feliz. “Quando a verdade rasga”, diz-nos Dulce Maria Cardoso, “a mentira também serve para coser. Ou para cicatrizar”, que o mesmo será dizer que nos cabe adotar a verdade ou a mentira, segundo a natureza dos rasgões de alma abertos pela vida. A vida é, por definição e sempre, uma narrativa aberta. É certo que, antecipadamente, sabemos que estamos condenados a um fim, mas é igualmente certo que nenhum de nós sabe quando, onde e como será, nem o caminho que nos falta percorrer até lá chegarmos. Por isso vivemos, e ainda bem, como se fôssemos imortais.

Se estivermos atentos ao mundo à nossa volta, cada pessoa com quem diariamente nos cruzamos transporta consigo uma narrativa aberta sobre a qual tantas vezes no interrogamos. Acontece-me muito, tal como naquele dia depois de sair da sala de cinema. Fui sozinha para casa e apanhei o metro. No banco à minha frente, estavam duas jovens com ar maduro. Uma frase ou outra que consegui ouvir permitiu-me concluir que eram íntimas, embora falassem de trivialidades. Numa das paragens, uma delas levantou-se, beijou a amiga, despediu-se e, naqueles segundos breves entre o assento e a saída, voltou-se para trás e despachou “olha, mas eu ainda não contei nada a ninguém”, ao que a outra respondeu “mas podes contar”, acompanhando a frase com um sorriso de contentamento. A porta da carruagem fechou-se, ela encolheu os ombros para furar por entre a multidão e desapareceu. O sorriso, esse, manteve-se pendurado na boca da que ficou, mesmo depois de ter pegado no telemóvel para ler as mensagens entradas. E foi isso que me chamou a atenção, porque estes sorrisos costumam ser instantâneos e desaparecer no momento em que um dos interlocutores se afasta e o outro volta aos seus pensamentos. Comecei, então, a interrogar-me sobre o que estaria na origem daquele tão prolongado sorriso. O que poderia ela contar? Que segredo guardavam ambas? Diria apenas respeito à vida delas ou também à de outras pessoas?

A minha imaginação continuou a trabalhar e a curiosidade a tentar satisfazer-se com as mais variadas hipóteses. Um novo relacionamento? Um enlace breve? Uma provável gravidez? Um novo emprego? Uma promoção? Uma mudança de casa? Uma viagem?

Pelo sorriso, só poderia contemplar um leque de agradáveis possibilidades! E a lista poderia continuar, não tivesse eu saído na estação seguinte e, de imediato, a minha atenção ser disputada por alguém que se me dirigiu com dúvidas sobre a saída mais adequada a utilizar.

Recolhida nos meus pensamentos, retomei o meu destino, caminhando sobre a certeza de que as nossas vidas são feitas de escolhas que funcionam como momentos de avanço ou recuo na narrativa que diariamente construimos, dependendo esta da forma como olharmos para as manchas de que nos fala Picasso.

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