Opinião

Mensagem de um estendal

Quem vive na sombra, inventa luzes.
Mia Couto

Não sou daquelas pessoas que diariamente expõe o seu quotidiano nas redes sociais. Sempre defendi uma certa reserva de intimidade que deve ser preservada e mantida fora do olhar de terceiros. Honestamente, nada tenho contra quem o faz, mas, pessoalmente, não sinto essa necessidade de me expor, nem me faz falta a luminosidade dos “likes” a piscar porque, por onde me movo, tenho as minhas próprias luzes.

É certo que aderi ao “Facebook”, mas limito-me a partilhar alguns eventos de interesse geral e um ou outro apontamento que considero importante para os amigos que podem tirar proveito dessa publicação. No que às fotos diz respeito, só as divulgo quando postadas já por outras pessoas e, como tal, do domínio público. De resto, alguma memória que considero importante, embora ressalve que a minha autoestima de modo algum vive condicionada pelo número de “likes” que as fotos possam suscitar.

Uma amiga disse-me uma vez que o “Facebook” era o paraíso. Perante a minha reação de espanto, atalhou logo, em modo de explicação, que lá só apareciam imagens que retratam os momentos mais belos das nossas vidas. Tive de concluir que estava cheia de razão! E são esses belos momentos a entrarem-me pelo ecrã do telemóvel que me permitem saber por onde andam e o que fazem aqueles de quem sou amiga.

Esta semana, por exemplo, soube da abertura de um novo espaço de restauração em Toronto, designado “Mercado Negro”. Gostei do nome e, movida pela curiosidade, além de ter lido o texto que acompanhava a notícia, vi também as fotos. De imediato se percebe que este restaurante pretende recriar o ambiente de Portugal, não só pela oferta gastronómica que a ementa tão bem evidencia, mas também pela decoração das salas e terraço, onde não falta uma réplica dos guarda-chuvas de Águeda bem como um estendal de roupa, à semelhança dos que vemos em qualquer bairro típico de Lisboa.

Acreditem que sempre tive um enorme fascínio pelos estendais e, por isso, compreendo muito bem a forma como os turistas que nos visitam a eles se atiram de máquina em riste para captar todos os movimentos de um lençol, uma toalha, uma camisa ou qualquer outra peça de roupa desfraldada ao vento. Recordo-me bem de, em 1989, quando fui trabalhar para Helsínquia, a primeira coisa de que senti falta na paisagem da cidade foi precisamente de um genuíno estendal de roupa. Soube, depois, que eram proibidos dentro da malha urbana e só os poderia ver, de verão, no campo.

Desde que li um texto de Fernando Veríssimo sobre o lixo, costumo dizer que é possível deslindar os hábitos de uma família estudando o seu balde de lixo. Ora isto é válido igualmente para um estendal de roupa. Tantas mensagens que as peças expostas nos enviam! Basta saber descodificá-las.

É óbvio que o deste restaurante, pela sua função meramente decorativa, ganha uma natureza artificial, porque, de antemão, sabemos que alguém escolheu aquelas peças para produzir um determinado efeito. Se estivéssemos na presença de um autêntico estendal, pendurado na sacada de uma janela ou varanda, dele poderíamos retirar algumas conclusões. E vou arriscar algumas.

A casa seria habitada por uma mulher que vive sozinha, já que, entre as peças expostas, não vemos nenhuma de natureza masculina. Nem um par de peúgas! Pelo tamanho da roupa interior – cuecas e sutiã – deduzimos que a senhora possui um corpo que não prima pela elegância, eufemismo para designar uma senhora gorda. Trata-se de uma idosa, com hábitos bastante antigos, não só pelas caraterísticas da roupa exposta, sem marcas de juventude, mas também pelo uso do saiote, peça que denuncia práticas que a atual geração já perdeu.

Se é pela alimentação que nos definimos, podemos acrescentar que também a roupa e os demais acessórios têm uma linguagem que nos retrata.

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