OpiniãoAida Batista

Forget-me-not, a flor dos avós

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Foto: DR

Ando por terras do Minho e acabei de passar uma ponte. Do lado direito, à entrada, uma placa a indicar “Rio Neiva”. Desconheço, Manuel, a terra onde nasceste, mas sei que fica para estes lados, porque Neiva é um topónimo que associo às tuas origens. Continuo a conduzir e tento lembrar-me: porquê? De repente, descubro. Foi uma referência que li no editorial da última edição do Milénio, aquela que assinalava o Dia dos Avós no Canadá, e anunciava o lançamento do livro “Avós: Raízes e Nós” no passado domingo, na Casa do Alentejo de Toronto.

No título do editorial, convidavas os leitores a “celebrar o passado”, mas usaste o imperativo, não no sentido formal de quem dá uma ordem ou dirige um pedido, mas de quem faz uma súplica para que o passado nunca seja esquecido. E, após as explicações que ocuparam os dois primeiros parágrafos do texto, entraste num tom mais intimista, diria mesmo, confessional.

E falaste do convite que te fiz para também participares no livro, e abordares as marcas que um dos teus avós tivesse deixado na tua vida. Recordo a forma como te escusaste, alegando como te seria difícil remexer em algumas das memórias do teu passado. Compreendi, mas, bem no íntimo, eu sabia que, além do passado que invocavas como neto, havia também, como avô, um presente que te incomodava. Confessaste-o durante um jantar, numa das minhas idas a Toronto: de como as crianças podem ser usadas como moeda de troca nos desentendimentos entre adultos; da dificuldade em conviver pacificamente com tal situação, e, ainda, da impossibilidade de recuperar um tempo perdido, por muito que te iludisses com a satisfação de saberes que os teus netos até são boas pessoas. Na realidade, mais não é do que uma forma de te resignares e de aceitares o que não está nas tuas mãos poder mudar.

Se te dá algum consolo, acredita que outros, a quem o convite foi igualmente dirigido, sentiram a mesma dor que tu. Recebi mensagens que me falavam da dificuldade em desembrulhar memórias há muito esquecidas nas gavetas que o tempo se encarregara de fechar; das lágrimas vertidas sobre os episódios que se tinham visto obrigados a reviver; da impotência estampada nos rostos de pais e avós que tanto haviam lutado por vidas melhores sem nunca o terem conseguido; dos quotidianos de pobreza que haviam provocado partidas em busca de abundâncias prometidas.

Como muito bem dizes “somos aquilo que fazemos das nossas vidas”, mas admites também que o que somos nos obriga a uma reflexão permanente sobre as raízes de onde brotamos. A copa que compõe a árvore da nossa ancestralidade, por mais harmoniosa que pareça à primeira vista, nem sempre é composta de ramos perfeitos. Pelo contrário, muitos romperam retorcidos e marcados pelos nós que definiram os veios sinuosos do seu crescimento. Por isso, tal como as árvores, a luta pela sobrevivência, que pode chegar ao limite de ter de escolher entre viver ou morrer, nem sempre deixa espaço para o mimo, o colo ou qualquer outro código de ternura.

É por isso que, quando tentas ir ao encontro das tuas raízes – os teus avós -, os vês “através de olhos ensombrados pelas areias das dunas da praia de Castelo do Neiva”. À medida que o tempo passa, sentes que “a areia está a ser removida lentamente, grão a grão”, até ao dia em que, reconciliado com o teu passado, a imagem te aparecerá clara e limpa porque filtrada pelo afeto.

E tu, que, numa resposta inicial, não aceitaste falar do teu passado, acabaste por transformar as razões dessa recusa na melhor homenagem que podias fazer aos teus avós, honrando assim, palavra a palavra, a memória deles.

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