Opinião

Envelhecer – ponto de fuga entre a realidade e a ficção na literatura

O segredo de uma boa velhice
não é outra coisa além de um
pacto honrado com a solidão.
Gabriel García Márquez

Existe a máxima de que há duas situações na vida das quais não podemos fugir: dos impostos e da morte. Se não morrermos cedo, eu acrescentaria uma terceira a que estamos todos igualmente condenados – envelhecer.

O envelhecimento é um processo natural, gradual e progressivo, mas absolutamente irreversível no ser humano. O que o diferencia é a forma como cada um o encara e aprende a lidar com ele. Daquilo que conhecemos, quer através da realidade no terreno quer dos registos literários ficcionados em prosa e poesia, o processo de envelhecimento, salvaguardada uma ou outra nuance diferenciadora, passa por idênticos estados, ocorra ele no país de origem ou no de acolhimento, como acontece na nossa diáspora, mesmo quando diversificada social e culturalmente.

Em ambos os espaços – Cá e Lá – vemos plasmados quotidianos de violência, abandono, indiferença, solidão e muitos silêncios a que estão votados os idosos.

A obra de Álamo de Oliveira, “Já não Gosto de Chocolates”, é bem o retrato do final da vida de Joe Sylvia, imigrante em Tulare, Estados Unidos da América, para onde partira “numa manhã de agosto, lúcida de azul” a perseguir, como tantos outros açorianos, o sonho americano.

Olhando para o título do livro, de imediato somos transportados para a literatura de matriz açoriana, em que o cheiro, as cores e os sabores das encomendas enviadas da América estão sempre presentes. Entre esses sabores estava o das gamas, dos candinhos e dos chocolates, a que avidamente todos acorriam em dia de abertura das abundâncias da outra margem. Por isso eram tão apreciados os chocolates, símbolo do mimo e da gulodice ausentes do quotidiano das crianças e dos adultos da ilha. Mas lendo mais atentamente o título, notamos a presença do advérbio “já” que marca a fronteira entre dois tempos, o antes e o depois, ou seja aquele em que a metáfora de uma América doce passa a ter o sabor amargo do desenraizamento do corpo e da alma, transformando Joe Sylvia em mais um dos desiludidos da aventura da emigração.

Balizados que estamos entre duas datas – a do nascer e a do morrer – Joe Sylvia esperava pela segunda, fechado num quarto de 30 m2 de uma residência de luxo, para onde voluntariamente decidira ir, num gesto de coragem alicerçada na indiferença dos quatro filhos. Ali – “onde a lucidez acaba e o indefinido começa” – Joe Sylvia viajava por entre as memórias de uma vida que tanto o situavam num presente amargurado, como o transportavam para a ilha mítica “terra sem pecados e sem ocasião para cair em tentações”, onde idealizara um envelhecer e morrer diferentes, “com direito a lágrimas sentidas, salgadas de saudades novas que só desvaneceriam com o decorrer do tempo”.

Apesar de os filhos terem combinado entre si um calendário de rotação, em que cada um visitava o pai de três em três semanas, “apaziguando a consciência no ritual do dever cumprido” com uma caixa de chocolates silenciosamente deixada na cómoda, era com Rosemary, a empregada mexicana, que ele convivia diariamente. Ela era a testemunha daquele “corpo anquilosado por um punhado de artrites, com peles flácidas e encarquilhadas, cabelos brancos e ralos e dois andaimes de dentes postiços. Os anos tinham-lhe roído o viço da pele, o cerne dos ossos, até o transformarem nessa coisa quase monstruosa que ela não tinha remédio se não cuidar”. E cuidou até ao fim.

Porque foi Rosemary quem, ao sair da sala de cuidados intensivos do hospital, se abeirou dos filhos Tony, Lucy e Maggie, para lhes dizer: “Morreu! Mas não faz mal. Ele já não gostava de chocolates americanos…”.

Assim Rosa Maria se despediu da família de José Silva, lavrando-lhe para a posteridade a lápide de alguém que morrera por falta de comprazimento com os pequenos prazeres da vida.

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