Opinião

Correntes de gente

Aqui despi meu vestido de exílio/E sacudi de meus passos a poeira do desencontro. Sophia de Mello Breyner

 

A Póvoa tem mar, e o mar da Póvoa é como tantos outros mares, com correntes. E muito fortes que arrastam consigo barcos com vidas e nomes dentro. Fora, outras vidas à espera – também com nomes – que recolhem o que o mar devolve num nome só – náufragos! Estas são as correntes de sempre, feitas de elos ligados pela dor das perdas e das ausências.

Mas a Póvoa ganhou outras – As Correntes d’Escritas – que este ano celebraram 20 anos de existência. Como cenário, o mesmo mar! Mas, desta vez, em vez de arrastar gente para as profundezas, junta-as num oceano de ideias, sem linha de horizonte como limite. Começaram, como já tantas vezes foi repetido, com um projeto de juntar escritores do mundo ibérico e da lusofonia. Contam, os que nelas participaram na fase inicial, que mais parecia uma reunião de família em que os diferentes convidados, unidos pelo parentesco da língua, falavam uns para os outros. A fazer fé na narrativa genesíaca -“No princípio era o verbo”-, é assim que tudo começa! Depois, o verbo, que se quer ser transitivo, foi acrescentando complementos e outras categorias gramaticais “que fugiram do cativeiro da gramática e da sintaxe”, como no poema de Manuel Botelho da Silva, e chegou à voz do povo que nos ensina serem as conversas como as cerejas, umas atrás das outras. E assim foram crescendo os encontros, levedados pelo fermento da criatividade dos escritores e dos que os queriam ouvir. E as correntes tornaram-se mar de gente, que galga as fronteiras das margens para fazer do chão assento, quando é preciso.

À semelhança dos anos anteriores, os participantes de cada mesa recebem um mote, como se fora um caroço indecifrável, para o vestirem de texto e dele fazer nascer um fruto. O resultado é sempre imprevisível, porque cada autor lhe talha um fato à sua medida: liso e ajustado, pregueado de metáforas, com golas de citações, um cinto de alusões, rendas abertas de intimidades ou um simples avental de cujos bolsos saltam surpresas clandestinas.

Este ano, sob a égide do centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen, roubaram-se versos aos seus poemas, que foram distribuídos pelas diferentes mesas. Pese embora o facto de se tratar de uma efeméride, não podia haver melhor escolha, porque Sophia toda ela é mar, quer sob a forma de contos infantis, quer na poesia, onde tantas vezes é cantado e, num poema, ela própria se define “sal espuma e concha/ regressada à praia inicial da sua vida”, “Aquela praia extasiada e nua/ onde me uni ao luar, ao vento e à lua”, ou, como se fora um testamento: “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”!

O mar da Póvoa também canta, baixinho, murmúrios segredados na areia, “como o florir das ondas ordenadas” ou, em rugidos de fúria, se atira contra as rochas negras que se atravessam no seu caminho. Por isso, as Correntes não são só feitas de palavras escritas, mas também ditas e cantadas no hibridismo das vozes e dos ritmos dos países representados, que formam uma língua nova em que todos se entendem.

As Correntes d’Escritas são tudo isto, mais aquilo que não consta do programa oficial: as estórias de bastidores que cada um leva para contar, forjadas nos convívios noite dentro, entre conversas e copos cheios de desabafos e confidências.

Como fã incondicional do evento, contarei o tempo em luas como os índios e, assim que fevereiro chegar, usarei as palavras de Sophia para me repetir “E de novo caminho para o mar” – o mar da Póvoa de Varzim!

Aida Batista

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