Opinião

Caminhos de água

Realiza-se amanhã, dia 19, na Casa Memória de Camões em Constância, uma Conferência subordinada ao tema “Os mares épicos de Camões”. Faço-lhe referência porque o autor da comunicação será o Professor Josiah Blackmore, catedrático de Língua e Literatura Portuguesas na Universidade de Harvard (EUA), que a esta vila se desloca propositadamente para este efeito.

Josiah Blackmore é um professor a quem mais de uma geração de estudantes, em Toronto, muito deve. Com efeito, antes de se ter candidatado a um lugar em Harvard, foi, durante 22 anos, professor titular de Literatura Portuguesa no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Toronto, onde tive o privilégio de o conhecer e de com ele privar durante os cinco anos em que também lá trabalhei. Será, portanto, com o maior gosto que nos iremos encontrar e recordar amigos, tempos e espaços da minha carreira, que muito me marcaram.

Não estranho que, perante um convite para vir falar sobre o nosso poeta Camões, Josiah Blackmore tenha escolhido o mar, como tema, porque sempre soube que era um apaixonado pela aventura marítima portuguesa, tanto no que ela tem de mais épico como de mais trágico, como é o caso dos naufrágios, a que dá particular destaque nas suas publicações.

De acordo com o resumo da comunicação, enviado à organização, é-nos dito que a maioria dos estudiosos e investigadores se têm debruçado muito sobre as questões do imperalismo e do globalismo, mas são raros os que que se dedicam ao estudo da imaginação camoniana de “cariz marítimo no sentido de o mar fornecer toda uma série de hipóteses metafóricas, simbólicas e empíricas utilizadas pelo poeta em criar a narrativa histórico-mitológica da viagem de Vasco da Gama”.

Neste contexto, e contrariando a linha económica dominante, é objetivo da conferência “estudar as relações entre a navegação e a narrativa épica, entre os navios e o decorrer da história, entre a saudade camoniana, o exílio e os mundos de água em alguns dos poemas líricos, e o lugar do mar e da navegação na cultura científica do mundo em que viveu Camões”.

O fascínio pelo mar esteve sempre inscrito nos nossos genes. Terminada a Reconquista e definidas as fronteiras terrestres, que alternativa nos restava que não fosse procurar a linha de água que nos banha? E foi pelo mar que se cumpriu o nosso destino de abrir caminhos de água e ir ao encontro de povos e de lugares com quem estabelecemos relações. De entre todos esses lugares, a Índia ocupou sempre um lugar único e mítico no nosso imaginário, aquele aonde já todos fomos, mesmo sem nunca lá termos estado. De cada vez que se evoca a nossa epopeia, viajamos pelas palavras e vemos paisagens assinaladas por topónimos familiares, sentimos cheiros e sabores, ouvimos sons e vemos cores de tudo quanto imaginamos e desejamos ver, porque, pelos olhos da imaginação, nem todos vemos as mesmas coisas.

Como escreveu Almeida Faria, “quem regressa de uma terra tão diversa traz fragmentos de caras, casas, ruas, cheiros, quartos, uma carga de imagens que, na alfândega roleta do lembrar e esquecer, deveria pagar excesso de bagagem”.

Esse excesso de bagagem é percecionado de forma diferente por cada um dos visitantes, porque nenhum de nós viaja como uma tábua rasa, mas a partir de conhecimentos previamente adquiridos e sedimentados no nosso edifício cognitivo, construído a partir de múltiplas temporalidades e pré-juízos sobre o outro, a partir do único universo mental que conhecemos – o nosso!

Por isso, o que vemos, como diria o poeta, não é o que vemos, senão o que somos.

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