Opinião

Caminhar por Amor

E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. Coríntios 13:2

Aposto que a maioria de vós teve oportunidade de ver o brilhante desempenho de Morgan Freeman e Jack Nicholson no papel de dois doentes terminais no filme “The Bucket List” que, em português, ficou conhecido pelo título “Antes de Partir”. Estes dois homens, de posição social e condição financeira opostas, mas unidos pela doença que lhes ditara uma vida a prazo, decidiram elaborar uma lista daquilo que gostariam de fazer antes de partir. De entre as inúmeras vontades, de que ainda me lembro, estavam: saltar de paraquedas, percorrer parte da Muralha da China, visitar o Taj Mahal e viajar até ao Egito. Já não recordo as outras, mas todas eram iniciativas que ambos teriam de experimentar pela primeira vez.

 

Santuário de fátima (Foto:DR)

 

Felizmente, e que eu saiba, não fui acometida de nenhuma doença prolongada, mas tenho consciência de que à medida que a idade vai avançando também o meu prazo de validade se vai esgotando. Por isso, embora não me tenha passado pela cabeça elencar (como agora tanto se diz) uma lista de vontades a concretizar, a verdade é que, de vez em quando, falo de coisas que ainda gostaria de fazer.

Já fui ao Egito, já percorri umas centenas de metros da Muralha da China, já fiz o salto de paraquedas, e tinha planeado ir à Índia em abril, não fora a covid-19 dar-me cabo dos planos. Havia, no entanto, outra experiência que há muito planeava viver – ir a Fátima a pé. E fui este fim de semana.

Os que me conhecem – sabendo que sou um ser espiritual, mas não propriamente dotada daquela fé que move montanhas -, estranharão este meu desejo. Nem sequer me senti impelida por nenhuma motivação especial, a não ser a de ficar a conhecer melhor todos os meandros dos caminhos de quem o faz por pura convicção,ou pelo desafio de perceber os limites do seu corpo. Estes passam por sentir: o asfalto a escaldar e a devolver-nos as ondas do calor da miragem, os pés a inchar e a ganhar a dormência acusada pela menor oxigenação, as bolhas a ocupar o espaço deixado vago nos interstícios da pele, as pernas a medir o peso do cansaço acumulado, as costas a acusar o movimento da mochila – mesmo que leve e bem ajustada -, as ancas a denunciar o compasso ritmado do andar, o caminhar em modo automático como se o corpo anestesiado pela dor já nada mandasse, a enorme vontade de, no final de cada percurso, atirar o corpo ao chão e deixar-se estar a fruir da vitoriosa sensação de triunfo sobre mais uma etapa vencida.

Perguntar-me-ão se valeu a pena, e eu responderei com um convicto “sim”, sem necessitar de enumerar todas as razões que justificaram esta minha jornada de superação. De livre vontade e sem pruridos, apontarei a que considero ser a que maior satisfação me deu: ter sido uma caminhada intergeracional, porque foi feita com os meus filhos e o neto mais novo, numa representação triangular de gerações. Acrescento, no entanto, a solidariedade e o apoio dos que, ao passarem por nós, afrouxam e nos dirigem palavras de incentivo, ou uma sonora buzinadela, como é o caso dos camiões; a sintonia dos diferentes grupos que, provenintes de variadas regiões e distâncias, se sentem irmanados num projeto comum.

De tudo, porém, o que me marcará para sempre será a forma como passarei a olhar e a respeitar os peregrinos que, de ora em diante, for encontrando. Porque, entre eles, estarão aqueles que, como eu, não sendo movidos pela fé, caminharão por amor: de algo ou de alguém.

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