Aida Batista

O silêncio dos bancos

Opinião

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Crédito: Aida Batista

Estou incluído no grupo das palavras homónimas – as que se pronunciam e leem da mesma maneira. Para as exemplificarem, os professores começavam por aquela, onde os que lá trabalham se dedicam a uma atividade contrária à poética da minha existência. Um lugar onde se guardam fortunas, mas também os parcos pecúlios de quem faz da poupança a renúncia aos pequenos prazeres da vida. Essa é a função de um Banco, embora, nos últimos tempos, tenha recaído sobre todos nós a responsabilidade de pagar a sobrevivência de alguns deles, o que nos leva a dizer: eu “banco” o idiota, demonstrando assim a plasticidade que a língua ganha, quando viaja para outras latitudes e nome passa a ser verbo.

Outro exemplo para demonstrar a homonímia da minha existência está em fazer “banco” ou estar de “banco”, significando estar de serviço durante a noite no hospital para acudir a qualquer urgência. Sempre me interroguei sobre a origem de tal expressão, que contraria a função para que fui criado – o descanso. É para isso que sirvo quando me destinam a ser banco de jardim, banco de esplanada ou banco de rua, mesmo quando esta sai da sua pequenez para se transformar em avenida. Sou, portanto, o lugar que tantos buscam para descansar de uma caminhada, confessar intimidades, trocar juras de amor, ou ainda, dar dois dedos de conversa aos que, de costume e à mesma hora, se sentam num ritual combinado.

As conversas soltam-se ao ritmo da rotação do sol em cada estação. Se faz frio, buscam o lado da rua onde bate o sol que aquece o desenrolar da trama. Se faz calor, mudam-se para o outro lado, num jogo de escondidas, à procura da fresquidão do dia. No caso das pequenas vilas, que é onde moro, os que comigo convivem entregues à tagarelice da tarde, são catalogados de forma diferente em função do género. Os homens, esgotado o tema do futebol – que cada um comenta consoante a sua cor clubística -, tornam-se alfaiates no corte e costura das vidas dos que por ali vão passando em cumprimentos de circunstância. Mas são sempre apodados de respeitáveis senhores! Se forem mulheres, entregues à tagarelice de quotidianos domésticos onde tudo cabe (a saúde ou falta dela, as mezinhas para os males que não precisam de idas ao hospital, as limpezas e os truques para que tudo brilhe, as receitas e as dicas para que um bolo não murche e outro não se agarre à forma), são sempre apodadas de quadrilheiras, a repartir entre si os despojos das intrigas de maledicência, ou, mais recentemente, de fofoqueiras, desde que o universo das novelas brasileiras invadiu o nosso mercado televisivo.

A mim, é-me indiferente aquilo de que falam – assuntos elevados, exercícios de má língua ou a brejeirice de certos trocadilhos – porque do que eu gosto mesmo é de os ouvir saltar de uma intervenção para outra com a informalidade de quem conversa sem guião ou agenda de trabalhos. Tanto os oiço gargalhar, como em sussuros lamentar mortes e desgraça alheia, ou entregarem-se o silêncio do que fica por dizer. De repente, há sempre alguém que se anima, muda o fio à conversa e retoma o ritmo dos assuntos ensarilhados.

De repente, tudo mudou. Chegou a vez de também eu ser confinado e reduzido ao silêncio das ausências. Por falta de máscaras do meu tamanho, cruzaram fitas adesivas entre o encosto e o meu assento, para que ninguém mais caísse na tentação de me procurar. Esqueceram-se de que um banco não é apenas uma peça de mobiliário urbano, mas também confessionário ou divã de psicanalista, onde cada um reparte com terceiros as suas angústias.

No silêncio desta crucificação de fitas adesivas, brado contra os meus homónimos que, senhores do dinheiro e do saber, me sentaram no banco dos réus para lavrarem a sentença da minha condenação à indiferença.

As Quatro Estações-portugal-mileniostadium
DR.

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