Aida Batista

A memória dos sentidos

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Foto: DR

 

“… a experiencia he madre das cousas,  por ella soubemos rradicalmente  a verdade…”

– Esmeraldo de Situ Orbis, Duarte Pacheco Pereira

Eu não tenho qualquer formação na área da fisiologia da memória, nem qualquer noção teórica de como se armazenam as informações, do funcionamento dos diversos tipos de memória, de como se faz a consolidação das aprendizagens adquiridas ao longo da vida, do que são reminiscências ou da diferença  entre as várias mnésias. E fico-me apenas por estas questões, por serem aquelas que, de um modo geral, mais formulamos, particularmente quando a idade vai avançando e começamos a notar pequenas falhas. Quando já se levam uns bons anos de vida, é normal que, na falta de conhecimentos por via académica, outros tenhamos adquirido de forma empírica, ou seja, através da experiência.

Partindo de uma definição transversal a todos os dicionários, diremos que a memória é a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar a informação disponível no nosso cérebro. Variam apenas as nossas opiniões sobre as diversas nuances de funcionamento da referida capacidade, que não se processa da mesma forma para todos. Sendo o ato de aquisição puramente cognitivo, ensina-nos a experiência que os sentidos ajudam a receber e a armazenar a informação de modo a influenciar a formação da memória. Ou seja, tanto o ouvido, como a visão ou o olfato tem um papel fundamental em todo este processo.

A literatura oral, de que os provérbios bem podem ser um bom exemplo, necessitou da rima para não se perder de boca em boca; as mnemónicas facilitam a associação de ideias, e os lamirés são sinais que, depois de emitidos, soltam a música que lhe está ligada.

Se pensarmos na visão, depressa nos lembramos de, no tempo de estudantes, tanto as frases destacadas a cores, como os sublinhados e notas laterais nos ajudarem a reter os textos que tínhamos de decorar. Quantas vezes, perante uma pergunta num teste, conseguíamos visualizar a página e o parágrafo onde estava a resposta.

E que dizer da importância do cheiro? De como ele evoca lugares, paisagens, corpos, rostos e até objetos que fizeram parte de vidas passadas. Há cheiros absolutamente inconfundíveis, que se experimentam, mas não se conseguem explicar.

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Da primeira vez que fui a S. Petersburgo, recordo o odor dos sobretudos dos agentes, assim que deles nos aproximámos, após termos passado a linha de fronteira. Se me perguntassem como era, eu não saberia defini-lo, mas diria que era o cheiro a União Soviética.

Um outro cheiro, de um outro tempo, também nunca será esquecido – o da roupa de fardo. Quando vivia em Benguela, era normal certas lojas receberem, com alguma regularidade, fardos de serapilheira, prensados em tiras de metal, com roupa vinda da América. Tratava-se de uma venda clandestina (na candonga, como se dizia), ou seja, os produtos não eram expostos, e a abertura dos fardos tinha dia e hora marcada para as convidadas que, em primeira mão, tinham acesso a um produto de segunda mão.

Claro que numa cidade, capital de província, não faltavam os circuitos comerciais de venda ao público, com lojas sempre a par da última moda da Europa. Mas a roupa de fardo era outra coisa, e exercia um enorme fascínio sobre as jovens daquela época. Apesar de usada, vinha do outro lado do mar e tinha qualquer coisa de diferente, tanto nos materiais como no corte e adereços, difíceis de competir com os modelos europeus. Mas outro elemento a distinguia – um cheiro, um cheiro único, que ainda hoje não consigo descrever. Mas tenho a certeza de que o identificaria, mesmo de olhos vendados, se me pusessem uma peça à frente do nariz.

Porque, como diria Duarte Pacheco Pereira, “Nos sítios da terra”, a experiência continua a ser a mãe de todas as coisas.

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