Opinião

A viagem dentro de nós

Quem viaja pouco adianta.
Tudo está dentro de nós.
– António Botto

 

É muito conhecida certa piada, tantas vezes contada, a propósito da gentileza de ceder o lugar nos transportes públicos. Para os que nunca a ouviram, aqui fica. Uma senhora idosa entra no autocarro e não vê nenhum lugar vago para se sentar. Agarrada às costas de um dos assentos, segue de pé em equilíbrio precário, na esperança de que alguém repare nela. Ao perceber que continuava numa espera vã, comentou alto: “Já não há cavalheiros, neste autocarro”! A resposta, também ela no mesmo tom, não se fez esperar: “Ó minha senhora, cavalheiros há, não há é lugares”!

Como sabemos, os autocarros estão hoje dotados de espaços devidamente sinalizados, destinados a grávidas, pessoas com crianças ao colo ou portadores de deficiência motora. Porém, nada diz sobre idosos. Contudo, dita o bom senso e as regras da boa educação que, perante um idoso de pé, deve alguém mais novo dar-lhe o lugar, seja num transporte público ou em qualquer outro lugar.

No entanto, considerando que, quando entramos, nem sempre existem utentes dentro das condições referidas, é normal que nos sentemos nesses lugares, até que numa paragem entre alguém abrangido por um destes requisitos.

Como utilizadora assídua dos transportes públicos, tenho assistido aos mais variados episódios durante as minhas viagens. Posso dizer que já vi e ouvi de quase tudo: desde gestos simpáticos do motorista que retarda o fecho da porta, aguardando por quem corre numa tentativa desesperada de ainda chegar a tempo, até ao que, escrupuloso no cumprimento do que julga ser o seu dever, finge não perceber a chegada de alguém no momento exato em que a porta se fecha.

Mas se o humor do motorista é variável, que dizer do dos passageiros que, fazendo deles bodes expiatórios, descarregam a fúria de qualquer atraso, das travagens mais bruscas para evitar acidentes, dos arranques sem aviso prévio, da indignação perante os apertos entre espaços sobrelotados. Porém, aquilo a que assisti há duas semanas foi absolutamente inédito, em termos de desfecho. Tão inédito que logo achei ser merecedor desta crónica.

Numa das paragens do circuito Marquês de Pombal/Sete-Rios, entraram quatro senhoras de diferentes faixas etárias. Cabelo todo branco e um rosto menos fresco denunciava a senioridade de uma delas. À parte isso, o ar despachado e enxuto indicava que não deveria sofrer de qualquer mazela. Nos lugares com sinalética, ia sentado um mulato robusto, cujas roupas acusavam a profissão – operário da construção civil.

Uma das senhoras mais novas do grupo, dirigindo-se à outra, cochichava entre dentes: “A senhora tinha direito àquele lugar… a senhora deveria exigir, não era pedir, porque esta gente não tem educação nenhuma. A senhora vai aqui em pé, e aquele, cheio de saúde, rafestelado nos lugares que são para os idosos… a senhora diga qualquer coisa”!

A senhora nada disse, e o seu silêncio exasperou ainda mais a outra que levantou a voz: “Por causa de nos calarmos é que eles não aprendem”!

O senhor, quando percebeu ser a causa do burburinho, levantou-se e dirigiu-se à senhora: “Minha senhora, por favor, tem aqui o meu lugar. Sente-se”! – “Não, não, muito obrigada! Por favor, sente-se o senhor que, depois de um dia inteiro de trabalho, precisa de descansar”. 

E manteve-se em pé, apoiada nas convicções de que a sinalética não deve ser levada à letra, já que a senioridade não tem que ser sinónimo de doença, velhice ou dependência. No dia em que não pudesse ir de pé, seria ela a pedir aquilo a que tinha direito.

O motorista, aparentemente indiferente ao que se passava, esboçou um sorriso de satisfação! Eu também, porque esta foi a maior e mais inesperada lição de sabedoria e generosidade que me foi dado testemunhar, enquanto houver gente que, dentro de si, segue o percurso da sensatez.

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