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“O Deus da violência não existe”

Teólogo e biblista, Frei Fernando Ventura foi professor de Ciências Religiosas no ISCRA em Aveiro. É intérprete na Comissão Teológica Internacional da Santa Sé. Colabora, como tradutor, com diversos organismos internacionais. Pertence ao quadro de redatores da revista Bíblica, onde assina artigos de aprofundamento teológico. Autor do primeiro estudo sobre Maria no Islamismo, lançou o livro Roteiro de Leitura da Bíblia. Ministra cursos e retiros, percorre o mundo, de convite em convite ou de conferência em conferência, como tradutor. É assíduo comentador de atualidade social e religiosa em diversos canais de comunicação social em Portugal.

Como é possível? Esta é a pergunta recorrente que qualquer pessoa de bem e de bom senso faz, sempre que as notícias chegam carregadas de sangue, injustiça, revolta, ódio… e sustentadas em supostas crenças religiosas. Frei Fernando Ventura é franciscano capuchinho. Foi a ele que recorremos para tentar entender o que nos parece inexplicável – como é possível alguém matar em nome de Deus?

Frei Fernando Ventura – O Prof. Agostinho da Silva dizia “eu não tenho religião, há uma religião que me tem a mim”. A pior coisa que pode acontecer a alguém é ter uma religião. Seja uma religião religiosa, seja uma religião política, seja uma religião futebolística, seja tudo aquilo que faz de mim o centro do mundo e não me permite passar para além de mim, em relação ao outro. Eu só sou capaz de encontrar Deus se for capaz de me desinquietar a mim. Eu digo sempre que há um momento zero de toda a revelação da Bíblia – quando Moisés ouve uma voz que o chama e ao mesmo tempo lhe diz tira as sandálias porque o espaço que pisas é sagrado. É a grande declaração formal da sacralidade do espaço do outro, da sacralidade do espaço de Deus e da sacralidade do meu espaço. É este o desafio. E é aqui que falham as pessoas que são gente da religião, mas não são gente de fé. São pessoas incapazes de perceber que a construção do “nós” se faz com a interseção dos dois “eu’s”

M.S. – O que me está a dizer é que devemos separar, de uma forma muito objetiva, a religião da fé.

F.F.V. – Sim. E quantas vezes são as religiões que incomodam a fé, vemos pessoas obrigadas a determinado tipo de comportamento, em nome de Deus, deixando de lado o outro. Dou sempre o exemplo do samaritano – está um homem caído na estrada a precisar de ajuda, passa o sacerdote, passa um levita e quem pára é o samaritano. Mas o sacerdote e o levita não param por serem maus, eles não param porque têm uma religião. Porque se eles tivessem tocado no cadáver ou no sangue ficavam impuros para entrar no templo. A religião tribalizada, o fanatismo religioso é isto, é quando eu sou o centro de mim próprio.

M.S. – E é o fanatismo que leva ao extremismo…

F.F.V. – Por isso é que todas as religiões têm as mãos manchadas de sangue. E a culpa não é das religiões, a culpa é de gente que não sabe ser gente com outra gente. Tenho dito tanto isto em tantos sítios… a nossa missão, independentemente da opção futebolística, sexual, clubística, gastronómica, política, seja o que for…, enquanto seres humanos a única missão que nos toca é ser gente com gente, para que cada vez mais gente seja gente e nunca ninguém deixe de ser pessoa. Na eternidade não há religiões. Deus não tem religião.

M.S. – Porque Deus será o mesmo para todas as religiões, não é?

F.F.V. – É o Deus que acima de tudo tem uma relação pessoal com cada um de nós. O drama é quando as religiões entendidas como articulações de comportamentos e normas de relações interpessoais não são momentos nem espaços de celebração da fé, mas são momentos de celebração da minha tribo. Isto acontece no futebol, acontece na política, acontece na vida social – a tribalização do eu. Nós vivemos numa sociedade, como eu costumo dizer, solteira de afetos, viúva de emoções e divorciada de compromissos. De relações fluídas, de utilidade… O que está em crise hoje em dia não é a fé. O que está em crise é a vida.

M.S. – As relações entre as pessoas…

F.F.V. – Entre os estados, entre os países. Temos muitos conflitos no mundo que não são mais do que conflitos políticos, geopolíticos e económicos mascarados de religião.

M. S. – Quando se fala desta temática – religião – usa-se muito um conceito que, eu sei, o Frei Fernando Ventura não gosta mesmo nada, que é a Tolerância.

F.F.V. – Tenho uma raiva danada à tolerância

M.S. – Porque isto de tolerar alguém pode querer dizer que estamos a menosprezá-lo, não é?

F.F.V. – Completamente! Eu posso tolerar uma dor de cabeça, uma dor de dentes enfim, mas eu não tenho que tolerar ninguém. Eu não tenho o direito de dizer a ninguém “eu tolero-te”. Nós só temos o direito de olhar alguém de cima para baixo quando for para o ajudar a levantar-se. E há um outro mito que é preciso desconstruir – nós estamos todos convencidos, e ensinamos isso aos nossos filhos, nas escolas, nas catequeses…, que a minha liberdade termina quando começa a liberdade do outro – isto é uma estupidez.

M.S. – É?

F.F.V. – É, porque se o outro é o limite da minha liberdade eu tenho que o matar para ser livre. Os conflitos estão aqui também. Quando percebermos que na relação eu/tu a minha liberdade aumenta, na medida em que encontra a tua liberdade. Se eu for capaz de abrir o meu metro quadrado ao metro quadrado do outro, nós ficamos com dois metros quadrados. A minha liberdade alargou. O outro não é o limite.

M. S. – Mas quando se diz a minha liberdade termina quando começa a do outro é sinal de respeito pelo outro, pelo metro quadrado do outro…

F.F.V. – Oxalá fosse. Os nossos amigos muçulmanos diriam Insha’Allah. (risos)

M.S. – A propósito de dizer “nossos amigos muçulmanos”… eu sei que o Frei Fernando Ventura convive muito bem com outras religiões. O que poderemos fazer para haver cada vez mais pessoas assim… a olhar para os outros como iguais e respeitá-los na sua diferença?

F.F.V. – É perceber que o meu irmão judeu precisa que eu seja um bom cristão para ele ser um bom judeu. O meu irmão muçulmano precisa que seja um bom cristão para ele ser um bom muçulmano… e por adiante. A diferença do outro é aquilo que me completa. Se não eu morro sozinho.

M. S. – A religião hoje em dia é geradora de enormíssimas fortunas.

F.F.V. – São autênticos impérios.

M. S. – E isso, desde tempos imemoriais tem provocado guerra.

F.F.V. – E, desculpem a vulgaridade, sempre que o poder político e o poder religioso foram para a cama juntos, nasceram monstros. E o mundo de hoje continua com monstros destes. Com casamentos de conveniência. Por trás da geopolítica está sempre o calendário das guerras atuais e das guerras futuras, se quiser perceber onde vão acontecer os próximos conflitos tem que ver onde está o gás, o petróleo… ali vai ser montado um conflito. Ali vai ser montada uma guerra. Que vai ser uma guerra mascarada de religião, que de religião não tem nada.

M.S. – Como já teve oportunidade de dizer todas as religiões têm as mãos manchadas de sangue. E isso gera ódios. O que podem fazer hoje os líderes religiosos, as pessoas de bem, para resolver esta situação?

F.F.V. – É preciso que as pessoas de bem não se calem, independentemente da sua opção religiosa. A frase não é minha, mas “o que me assusta não é a voz dos maus, mas o silêncio dos bons”. Este é o tempo de passar da religião à fé, nas comunidades católicas, por exemplo, temos demasiadas missas e pouquíssimas eucaristias, temos demasiada gente que vai à missa, mas não vai à vida, temos gente “casada” com um Deus tirano que esmaga, mas que é gente que na vida real olha os outros de cima para baixo. A urgência é passar da religião à fé, da lógica do poder à lógica do serviço. Por aqui transformamos o mundo. Se não, não faremos mais do que construir muros e vamos morrer orgulhosamente sós. Agarrados a mitos. O Deus da violência não existe. E um homem ou uma mulher que diz que tem uma relação com Deus e não tem uma relação de horizontalidade com a vida, é só um fanático. É só um doente.

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