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Corpo aberto ao Poema*

 Por: Dra. Aida Batista

Um livro, antes de ter corpo físico, existe muito antes na imaginação de quem o escreve, onde a matéria de que é feito – as frases sob a forma de comparações, metáforas, redundâncias -, não são apenas figuras de estilo para obter efeitos de belo recorte  literário, mas, e acima de tudo, reproduzem a mundividência do autor, mesmo se, expressa, em palavras soltas.

Depois de publicado, ganha forma, tamanho e  peso, de acordo com a capa onde se inscreve o título. Quando olhamos para um livro, esteja ele na montra ou no escaparate de uma livraria – e nada sabemos sobre o autor -, o título, a capa e os resumos nas badanas, é o que nos chama a  atenção e em muito contribui para a decisão de o comprar…  ou não! E eu devo confessar que «Corpo Aberto» foi uma escolha feliz de quem teve a responsabilidade de, através desta edição, fazer uma homenagem póstuma a José António Correia Pais.

Sei que é o nome de um dos poemas (como é prática habitual) mas, mesmo que não fosse, está em consonância perfeita com a essência da poesia nele contida, em que as referências ao corpo, tanto como sujeito ativo no amor, como de passivo objeto de contemplação, é uma presença constante.

Poderia recorrer a muitas citações, mas refiro apenas esta, retirada do poema «Percurso sobre o corpo», “(…) a leveza da música./ canção aberta e envolvente./ ampla suavidade que a voz vem modelando./ os violinos na boca do corpo para a viagem no corpo.” que devem ter despertado em Massimo Esposito (ilustrador) o desenho da bela imagem que serve de capa, em que o corpo, quase sempre envolto na sua nudez natural,  nos aparece vestido de  instrumento musical, a dedilhar a pauta do jogo da sedução, ou, como nas ligas que rematam as pernas, evoca o erotismo e o prazer da dança do aliciamento do corpo.

Para além deste corpo físico, há um outro muito presente na obra – o corpo da terra – que nos transporta para as raízes beirãs, onde “um homem descobre o corpo da terra submerso pela folhagem/ pelo odor do feno nas primeiras chuvas/ pela rugosidade que o rigor dos meses provoca.

Se nos poemas, a terra não tem a força telúrica de Torga, ganha no colorido da paisagem, uma ode aos ciclos da natureza, desdobrados em estações e meses marcados pela floração, pelos formatos e odores dos frutos, pela musicalidade das águas da chuvas que formam ribeiros e correm valados, deixando o cheiro a terra molhada em

cada margem, num antropomorfismo, em que a natureza se assume humana:”(…) quantas vezes um homem tenta dobrar/ o preto e o branco das margens da vida/ quantas vezes um homem morre e renasce/ no cais da sua revolta quotidiana.”, ou ainda “(…) a paisagem gritou para os/ que a denunciavam nos mapas” de uma cartografia semeada de vozes a cantar o pão das ceifas de sol a sol.

Apesar das  suas raízes beirãs, Correia Pais foi também um homem da cidade, não no sentido do urbano acomodado, mas de quem está atento e sabe ouvir à sua volta o grito da pobreza e da miséria humana. Por isso ele age e interage com a cidade, num registo muito próximo da poesia de intervenção que, de tantos anos silenciada, um dia irrompeu numa manhã: ” (…) de abril se revela a palavra no seio das raízes./ e Lisboa envolvida em luz. em esperado caminho./ com um futuro nas mãos para as mãos./ (…) vozes em progresso emergem na madrugada/ e de abril se diz um rio em claro movimento.”

Mas Lisboa não foi só palco e cenário de revolução. Ao longo do seu percurso  profissional, Correia Pais conheceu-lhe todos os cantos e recantos percorrendo-a de forma detalhada no poema que é um hino de amor a “LISBOA.CIDADE” em cujo subtítulo (ou um poster deste amargo quotidiano), está bem patente  não só o seu lado de crítico mordaz, como as marcas de um tempo que já não existe, como “(…) o erotismo em cassetes./ crianças a vender revistas pornográficas aos soldados./ os vídeos. as salsa com filmes em sessões contínuas./ os farmacêuticos da baixa/ a fazer bom negócio na venda dos novos preservativos.”

Embora exista apenas um poema declaradamente dedicado à sua mulher São Martins, sabemos que ela foi a sua musa inspiradora, a companheira que a seu lado sempre soube “estar conjugado e pensado em termos de futuro” um caminho que não chegou a ser lavrado, porque ele sabia que a vida lhe seria breve e que o poema da vida, tal como o da morte “(…) não tem vida nem hora/ é um poema de agora e sempre.”

“Queremos manter com a morte uma relação de distância” escreveu ele, e este plural simbolizava a luta de ambos contra o inelutável, porque a doença avançava e tatuava a dor na alma, bem visível na face, porque “o corpo é sempre o resultado das marcas que o tempo marca”. Percebendo todas estas transformações e, como que a preparar a companheira para o desenlace final, mais uma vez o recurso ao plural “renunciamos à premeditada geografia dos verbos”, porque sabia haver neles um determinismo que dita o nascer e o morrer nos lugares que não escolhemos.

No dia em que fechou “suaves os olhos como violinos de sonho”, transformando o tempo no corpo do silêncio, não deixara qualquer incumbência nem à sua mulher nem à filha. Foram elas quem, em homenagem ao labor literário do marido e pai, em boa hora decidiram publicá-lo, porque a melhor forma de o homenagear seria não calar a mão que exaltou “a construção do espaço da linguagem/ sobre o branco da página.”

Felicito mãe e filha pela dádiva de o  partilharem connosco. Obrigada!

 

 * Excertos do texto de apresentação na Livraria Ler Devagar, em Lisboa.

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