Canadá

Democracia e linguagem do género

Humberta Araujo

Vamos reconhecer as meninas nas escolas de português na diáspora

A escolha em consciência de um vocabulário que reflita uma abordagem democrática nas escolas que ensinam a língua e a cultura portuguesas, que espelhe uma maturação cívica por parte dos/as docentes e reflita os valores de uma sociedade mais inclusa e moderna, é tão importante na diáspora, quanto são os materiais didáticos adaptados para o ensino do português, como segunda língua.
Da minha experiência como ex-docente, cidadã atenta e jornalista, tenho tido a oportunidade de verificar, que a conversa mais comum dentro das escolas portuguesas é a seguinte: “Os meninos portaram-se muito bem hoje”; “Temos muito orgulho dos nossos meninos”; “Os nossos alunos receberam prémios”; “Os nossos alunos fazem um grande esforço de aprendizagem”; “A formação dos nossos alunos é essencial”; “A sociedade do futuro está nas mãos dos nossos alunos”; “O futuro pertence aos nossos meninos.”
O masculino “alunos/meninos” é o género mais utilizado nas escolas portuguesas, e no caso da diáspora, diria que tal referência discriminatória e injusta, acontece muito provavelmente em mais de 90% dos casos, ainda que os números mostrem, que a maioria das crianças e adolescentes nas escolas, são do sexo feminino. Para além disso, na linguagem quotidiana, fomentam-se usos gramaticais que, com clara intenção de salvaguardar o status quo, generalizam a ideia de que, ao indicar um grupo composto de pessoas no masculino, estamos nomeando também o feminino e a incluir as mulheres neste grupo, o que é, do meu ponto de vista, desleal e falso.
Deixo aqui só alguns casos para consideração dos leitores/as: “A ciência baseia-se no estudo dos homens”, “Os homens são violentos”, A Carta Universal dos Direitos do Homem” ou “Deus quer, o homem sonha…”.
A humanidade é composta por mulheres e homens, e o mundo das crianças é composto por meninos e meninas. Todavia, em nenhum caso a palavra “homem” ou “menino” representa a mulher ou a menina. O mesmo se pode dizer do universo educativo, onde as escolas estão cheias de alunos e alunas, mas em caso algum o vocábulo “alunos” representa, as alunas. Para que o sexo feminino esteja representado, é necessário identificá-lo, nomeá-lo, ouvi-lo, e expressá-lo sempre, e em toda e qualquer circunstância, em que o português seja utilizado.
Para além da tarefa clássica dos professores/as, de ensinar a ler e a escrever, eu acredito que no contexto em que vivem muitas das nossas famílias portuguesas, a sala de aula poderia ter um papel mais abrangente e educativo. Acredito, que todos/as, e muito particularmente os professores/as podem ser mentores para a mudança de comportamentos, educando numa língua mais inclusa e consciencializando contra expressões discriminatórias, muitas delas ainda vistas como normais. Importa fazer a transição para um modelo de tratamento da língua, mais amplo e democrático, que dê maior visibilidade às alunas, e onde o uso do masculino não continue a legitimar a ideia, já suplantada, da superioridade do sexo masculino. Porque “de pequenino/a se torce o pepino”, a classe docente na diáspora necessita de começar a pensar o ensino da língua portuguesa nas escolas, como um elemento não restritivo, de promoção da igualdade e ‘empowerment’. Uma vez que a “nossa” língua possui os géneros masculino e feminino, a questão que se põe é: porque não os usamos quando falamos, escrevemos ou lemos? Na sua origem, a língua portuguesa não é uma ferramenta sexista. Ela torna-se sexista na forma como a utilizamos.
Do mesmo modo, que a utilização da língua pode contribuir para a discriminação, a escolha das palavras utilizadas, pode também reforçar os estereótipos, que a nossa cultura abraça. A linguagem sexista, impõe-nos que o masculino seja empregado como norma, ficando o feminino simplesmente como referência, dentro de uma linguagem masculinizada. Para mim, esta banalização do uso do masculino na língua portuguesa tornou-se o pai-nosso de cada dia. Todavia, ela não pode continuar a servir de desculpa para a falta de reflexão, discussão e mudança.
Aqui deixo uma questão: Como pode uma professora sentir-se bem consigo própria, – e aqui propositadamente refiro-me a professora/mulher, o que é tanto mais confrangedor – ao olhar de frente para uma menina, uma aluna sua, sem perceber o quão injusta está a ser, ao utilizar a língua portuguesa, sem reconhecer a presença e o trabalho da sua aluna, teimando em o relegar ao protagonismo do coletivo masculino?

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